Francelina Quinzico
Conhecida mundialmente pelas suas ondas gigantes, que atraem anualmente milhares de turistas e surfistas, a Nazaré é uma vila piscatória no centro litoral de Portugal. Muito antes de ser uma meca do surf de ondas grandes, a Nazaré já era uma terra intimamente ligada ao mar. Fiel às suas origens, a vila cresceu sem perder a identidade piscatória. Exemplo disso é a secagem do peixe, uma das tradições mais antigas e emblemáticas da Nazaré. Surgiu pela necessidade de conservar o peixe para os dias de escassez e foi passando de geração em geração até aos nossos dias. Uma das poucas mulheres que mantém viva esta tradição chama-se Francelina Quinzico.
Nascida em 1956, no seio de uma família numerosa, Francelina passou grande parte da sua infância na praia. “A minha mãe trabalhava nos armazéns de peixe, nós passávamos o dia na praia a brincar, só íamos para casa à noite”, recorda, sabendo das dificuldades que os pais enfrentaram para sustentar onze filhos. Uma das memórias de infância que guarda até aos dias de hoje é a visita dos franceses à Nazaré, nos anos 60. “Vinham em excursões. Nós não tínhamos dinheiro para nada. Aprendíamos logo o francês que nos interessava. Eles chegavam e nós dizíamos: ‘Monsieur, money para o pan pour la manger que mon papa morreu en la bateaux’. Depois apontávamos para o mar”, conta Francelina, que perdeu a conta às vezes que o pai morreu num acidente de barco. Apesar de ser pescador, o pai de Francelina faleceu de causas naturais muitos anos mais tarde. “A vida era difícil, as pessoas agora vivem chorando de barriga cheia”, desabafa a nazarena. Aos 11 anos, foi trabalhar para uma fábrica de bolos, onde esteve empregada até aos 21 anos.
Já com os dois filhos nascidos, Francelina Quinzico passou a acompanhar a sogra na venda do peixe seco. Ao contrário das irmãs mais velhas, que seguiram as pisadas da mãe desde tenra idade, Francelina só começou a trabalhar com o peixe depois de casada. “Como a minha sogra não tinha filhas, fiquei aqui a trabalhar com ela”, diz, referindo-se à mulher com quem aprendeu tudo sobre este negócio.
A “seca do peixe” é realizada, diariamente, por um grupo de peixeiras da Nazaré num estendal, localmente designado por “estindarte”, localizado no areal da praia da Nazaré. O peixe é comprado na lota e começa por ser amanhado, processo de tirar as tripas do peixe. Posteriormente, é lavado e passado por salmoura. Por fim, é escalado e estendido nos paneiros, tabuleiros retangulares de madeira com fundo de rede, tradicionalmente utilizados pelas peixeiras da Nazaré para colocar o peixe a secar ao sol. O tempo de seca depende das condições atmosféricas, da espécie e tamanho do peixe, e ainda da forma de secagem pretendida. Na Nazaré, distinguem-se duas formas de secagem: o peixe seco e o enjoado. Enquanto o peixe seco, por norma, permanece dois a três dias a secar, o peixe enjoado é preparado da mesma maneira, mas passa apenas três a quatro horas ao sol. As espécies mais utilizadas para a secagem são o carapau, a sardinha, o cação, a petinga, o verdinho (que aqui se chama “batuque”), a raia e o polvo. Nos paneiros de Francelina Quinzico, é possível encontrar todas estas espécies e muito mais. Douradas, robalos, pescadinhas, sáveis, abróteas, safios, etc. “Seca-se tudo menos bacalhau, que não é do nosso mar”, declara a peixeira, antes de atender mais um cliente.
Embora se note uma procura crescente por parte de hotéis e restaurantes da Nazaré, que começam a integrar o peixe seco nas suas ementas, sob uma apresentação gourmet, a maioria dos clientes já são habituais, que “sabem distinguir um carapau enjoado de um carapau seco”, conclui Francelina. Já os turistas, desconhecedores da tradição, “podem comprar um carapauzinho ou dois, só para nos tirarem uma fotografia”, mas não representam um grande volume de vendas.
Quando não está a vender peixe no “estindarte”, Francelina Quinzico está no Mercado Municipal de Porto de Mós, às sextas-feiras de manhã, e no Mercado de Pataias, aos domingos de manhã. Depois de trabalhar diariamente durante mais de quatro décadas, a peixeira decidiu, há cerca de 2 anos, tirar folga um dia por semana. “Nos meses de verão estou aqui todos os dias. Mas, no inverno, não costumo vir trabalhar à segunda-feira. Passamos aqui tantas horas que, às vezes, digo às minhas colegas que tenho saudades de casa. Chegamos a uma altura da nossa vida em que mudamos radicalmente a nossa forma de pensar, agora gosto de estar sossegada em casa”, diz Francelina, que conta com a ajuda do marido António na labuta diária.
Na opinião de Francelina Quinzico, a vida de uma vendedora de peixe seco é “muito trabalhosa e desgastante”. Por exemplo, “à sexta-feira, levanto-me às 3h30, às 4h vamos para o porto de abrigo buscar o peixe, chegamos a Porto de Mós por volta das 5h, arrumamos as bancas e tomamos o pequeno-almoço antes do mercado abrir. Quando regresso de Porto de Mós, ainda venho para aqui. Só chego a casa às 18h30, 19h. Estou umas 15 horas fora de casa a trabalhar”. Além da pesada carga horária, a peixeira gosta de lembrar que não compra o peixe já amanhado e escalado. “Se uma pessoa vender frutos secos, basta comprá-los e metê-los na banca. Não dá muito trabalho. Neste negócio é diferente. Compra-se o peixe e depois faz-se a transformação”, explica Francelina, enquanto ajeita a saia. Ao contrário das suas irmãs e de muitas nazarenas, Francelina nunca usou sete saias, uma das imagens de marca da Nazaré.
Apesar da dureza do trabalho, Francelina Quinzico não pensa em abandonar a profissão que exerce há 46 anos. Sempre que puder, vai estar junto aos seus paneiros a vender peixe seco e enjoado. Até porque, segundo diz Francelina, “nas costas de um homem, dá o peixe à costa, ou seja, às vezes quando vamos embora é que os clientes aparecem”.