Júlio Jorge
Na aldeia de São Cristóvão, a meio caminho entre Montemor-o-Novo e Alcácer do Sal, vive um dos grandes retratistas modernos em aguarela, de acordo com a International Watercolour Masters, uma prestigiada exposição que reúne pinturas dos maiores aguarelistas do mundo. Nascido a 9 de fevereiro de 1959, em Montemor-o-Novo, Júlio Jorge começou cedo a demonstrar apetência pelo desenho. “Lembro-me de, por volta dos 5 ou 6 anos, ter pedido às minhas tias para me oferecerem uma caixa de lápis de cor como presente de aniversário”, recorda Júlio, que morou em Vendas Novas até aos 7 anos de idade, altura em que se mudou com a família para São Cristóvão. Tendo vivido uma infância feliz, passada a “brincar na rua, jogar à bola e correr por todo o lado”, Júlio cumpriu o ensino secundário na Escola Secundária de Montemor-o-Novo. Foi lá que, duas das suas professoras, se aperceberam do seu jeito para pintar e desenhar, sendo que uma delas o incentivou a seguir Belas-Artes. Contudo, apesar do gosto pelas artes, decidiu enveredar por uma carreira militar no início da década de 1980.
Durante o tempo em que serviu o Exército Português, Júlio Jorge não deixou de “fazer umas brincadeiras em aguarela e guache” nos tempos livres. Aos trinta e poucos anos, apaixonou-se definitivamente pela aguarela, a arte em que se tornou mestre. Os seus primeiros trabalhos foram, sobretudo, paisagens urbanas, tendo a cidade de Évora como tema principal. À medida que iam chegando os pedidos, ia também crescendo a vontade de se dedicar exclusivamente à pintura, o que viria a acontecer uns anos mais tarde. O percurso como militar adiou o sonho de ser pintor, mas não o castrou. Caso contrário, Júlio Jorge não se tornaria um dos grandes nomes da aguarela.
Depois de pintar muitas paisagens, o que permitiu que se afirmasse como aguarelista, Júlio Jorge encontrou nos retratos a sua forma de expressão. “A primeira pessoa que retratei foi o meu pai”, conta, acrescentando que foi a partir daí, por volta de 2010, que decidiu dar início à série de retratos a que deu o nome de “Rostos da Minha Aldeia”. Desde então, já retratou mais de sessenta pessoas de São Cristóvão, sendo na sua maioria idosos. “Gosto muito de retratar os mais velhos. Os rostos dos novos têm pouco interesse”, diz o pintor, antes de explicar que esta série de retratos é “a minha maneira de gritar a minha revolta por ver o interior do país a ficar desertificado”. “Quando era miúdo, São Cristóvão tinha cerca de 1200 habitantes, neste momento são à volta de 500. Provavelmente, mais de 80% destas pessoas tem mais de 65 anos”, diz Júlio Jorge que, com a sua arte, obriga o público a olhar de frente os rostos do desamparo na terceira idade e da desertificação do interior alentejano.
Uma das condições que Júlio Jorge coloca para retratar uma pessoa é a de conhecer essa pessoa. A maioria dos retratados são pessoas que conhecem Júlio desde criança, sendo que o pintor tem atualmente 65 anos. “Gosto de trabalhar os rostos da minha aldeia porque conheço a história destas pessoas, conheço a tristeza destes olhos”, afirma, enquanto mostra um retrato onde sobressaem uns olhos de um azul profundo. “Este é o Dinis. Foi a pessoa mais difícil de retratar até hoje. Andei três anos a tentar convencê-lo a deixar-me fotografá-lo. Nunca deixava, creio que por timidez. Até que um dia disse que lhe podia tirar uma ou duas fotografias. Enquanto conversávamos, fui carregando no botão da máquina fotográfica apontada para ele, sem saber se alguma foto se aproveitaria. Só quando transferi as fotos para o computador é que vi o resultado”, conta Júlio, que já fez três retratos em aguarela de Dinis. Um desses trabalhos, cujo nome é “A Sós com os seus Pensamentos”, venceu, em 2022, o primeiro prémio do XI Prémio Internacional de Aguarela Julio Quesada.
A coleção de retratos intitulada “Rostos da Minha Aldeia” catapultou Júlio Jorge para a consagração como aguarelista. Desde 2010, já viu as suas obras distinguidas em países como França, Grécia, Itália, Espanha, Paquistão, Malásia e Estados Unidos. “O primeiro prémio internacional que recebi foi em 2015. Participei numa exposição em Bordéus com alguns trabalhos. O primeiro retrato que pintei do meu pai venceu o prémio atribuído pelo público”, conta o pintor autodidata. Em 2018, Júlio Jorge alcançou o que considera ser o ponto mais alto da sua carreira como pintor. Um dos seus retratos, intitulado “Mário”, venceu o prémio de aquisição da National Watercolor Society (NWS). “O prémio de aquisição significa que o trabalho foi adquirido para a coleção permanente do museu. Quando ganhei esse prémio, a NWS tinha 99 anos e “Mário” foi o primeiro retrato que adquiriu desde a sua fundação”, revela Júlio, sem esconder o orgulho. No ano seguinte, “o ‘Mário’ foi considerado um dos 21 trabalhos em aguarela mais importantes do ano nos Estados Unidos”. Outro marco da sua carreira foi expor um dos seus retratos na exposição anual da American Watercolor Society (AWS), uma das mais conceituadas exposições de aguarelas do mundo. Mesmo não ganhando nenhum prémio neste evento, Júlio viu um retrato em corpo inteiro do seu pai ser considerado a primeira venda da exposição. O seu êxito nos Estados Unidos também já passou por San Diego, onde há 3 anos ganhou o prémio Deena and Ken Altman Family Award. Além dos prémios e distinções, Júlio Jorge já vendeu as suas obras para coleções privadas e institucionais de vários pontos do mundo. Os rostos de São Cristóvão já estiveram em exposição em vários salões internacionais, do Canadá à China, e o próximo será em Inglaterra, onde poderão ser vistos no evento da International Watercolour Masters, que se realizará entre os dias 15 e 24 de maio de 2024. Ao longo da sua carreira, o pintor também já teve a oportunidade de participar em vários projetos artísticos, como é o caso de “Unseen to be Seen”, um catálogo de aguarelas, com dimensões de apenas 8 x 5 cm, criadas por alguns dos mestres desta arte.
Apesar de já ter feito várias exposições em Portugal, especialmente na região do Alentejo, o reconhecimento internacional de Júlio Jorge contrasta com uma certa indiferença nacional. “Por cada exposição que faço em Portugal, sou capaz de fazer seis ou sete lá fora”, refere o pintor, que já expôs os seus trabalhos em algumas das principais galerias de cidades como Londres, Nova Iorque e Los Angeles, mas nunca foi convidado a expor na galeria municipal da sua cidade natal, Montemor-o-Novo. A exposição em solo nacional que mais o marcou aconteceu o ano passado, tendo como galeria a antiga escola primária de São Cristóvão. “A exposição durou um mês. Veio gente de todo o lado, do norte ao sul”, conta, orgulhoso por dar a conhecer ao país a sua aldeia.
O tipo de cliente que adquire obras de Júlio Jorge também reflete o interesse que a sua arte desperta no estrangeiro, em oposição ao que acontece no seu país. “Tirando os familiares das pessoas retratadas, só vendi dois ou três retratos a portugueses que não conheciam essas pessoas”, revela o pintor montemorense. Na sua opinião, isto deve-se, entre outros motivos, a uma questão cultural. “Os portugueses não compram retratos de pessoas que não conhecem. Sendo algo muito pessoal, acham que só diz respeito à pessoa retratada. Podem achar muito bonito, mas não compram. Os americanos ou os ingleses não têm esse tipo de problema. Se virem o retrato e gostarem, compram”, diz, dando o exemplo de um retrato do seu pai que vendeu a uma advogada de Nova Iorque. Além das diferenças culturais, Júlio Jorge está consciente da diferença que existe entre o mercado português e o mercado americano ou inglês. Mas nem sempre foi assim. “Quando expus em Los Angeles pela primeira vez, sucedeu uma situação que até tenho vergonha de contar. A AWS pediu para atribuir um preço à aguarela, o “Mário”, e eu disse que valia 1600 dólares, a pensar que já era dinheiro. Quando cheguei à exposição, vi que a minha aguarela estava em posição de destaque, em virtude de ter ganho o prémio de aquisição. Um amigo texano chamou-me à parte e disse-me que não podia fazer o que estava a fazer. Fiquei surpreendido. Ele explicou-me que ao vender a minha peça àquele preço estava não só a menorizar o meu trabalho, mas também o trabalho de todo os artistas presentes na exposição. Depois disse-me para irmos dar uma volta pela exposição para vermos os preços das outras aguarelas. A aguarela mais cara que lá estava custava 80 mil dólares”, conta Júlio Jorge. “Na altura, não estava por dentro dos valores que se praticam nos Estados Unidos. No ano seguinte, já levei as minhas aguarelas ao preço de mercado americano”, explica, frisando que “em países como os Estados Unidos, Inglaterra ou França a aguarela não é vista como uma arte menor, ao contrário do que acontece em Portugal”.
A aguarela é uma técnica de pintura, na qual os pigmentos são dissolvidos em água e aplicados em diferentes suportes, como papel ou tecido. O efeito único da aguarela é resultado da transparência da tinta, mostrando todas as linhas e traços do pincel desde a primeira aplicação. A técnica de aguarela requer habilidade e prática para controlar a quantidade de água e pigmento usados em cada pincelada, bem como para trabalhar rapidamente antes que a tinta seque. “A aguarela fascina-me porque é transparente. Ao contrário do que acontece com a tinta a óleo ou com o guache, em que é possível deixar secar e raspar ou colocar outra cor por cima para corrigir um erro, a aguarela não admite esse tipo de situações. Apenas permite pequenas correções”, explica o pintor. Talvez seja por isso que “as pessoas têm algum receio desta técnica de pintura”, conclui. Júlio Jorge prefere encarar a aguarela como um desafio. “Nunca sabemos o que vai acontecer a seguir. Com a experiência, começamos a controlar as coisas, mas não é possível dizer que vai sair exatamente como queremos”, diz, enquanto aplica a técnica do “pincel seco” na tela. Sendo uma das técnicas usadas na aguarela, o “pincel seco” consiste em utilizar muito pouca água no pincel, o que permite adicionar textura à pintura. Nos seus retratos, Júlio Jorge utiliza, essencialmente, a técnica do “molhado sobre molhado”. Esta técnica consiste em aplicar a tinta sobre o papel quando este se encontra num determinado grau de humidade, permitindo que as cores se misturem de forma suave e orgânica. A escolha cuidadosa do papel é fundamental para o sucesso de um trabalho em aguarela. “Há papéis que absorvem mais água, outros absorvem menos água, há papéis que são mais resistentes, outros são mais frágeis. Cada pintor tem a sua preferência”, esclarece, antes de acrescentar que, nos retratos de grande formato, gosta de utilizar um papel acetinado, que tenha “uma gramagem forte e seja muito liso”.
Os retratos de Júlio Jorge demoram, normalmente, entre dois e quatro meses a ficarem concluídos, dependendo das dimensões da obra. “Quando estou a fazer um retrato, não consigo fazer mais nada. É muito absorvente”, diz, olhando para o retrato de José Morra, um dos rostos da sua aldeia. Quando questionado sobre se trabalha em dois retratos em simultâneo, Júlio é categórico: “Não consigo trabalhar duas almas ao mesmo tempo”. Uma parte significativa do seu tempo de trabalho é dedicada à observação. “Todos os dias, quando acabo de trabalhar, pego na tela e ponho-a num sítio bem iluminado, de forma que consiga ver bem o trabalho. Sento-me a olhar durante bastante tempo, a ver o que tem de ser corrigido, o que tem de ser acrescentado. O retrato tem muito a ver com a observação”, diz o retratista. Depois de terminada a obra, Júlio admite sentir-se vazio, dando razão a Júlio Pomar que, segundo Júlio Jorge, “dizia que o retrato suga-nos a alma”.
Quando não está a pintar rostos de São Cristóvão, Júlio Jorge gosta de pintar oliveiras. “À medida que vão envelhecendo, as oliveiras ganham um aspeto muito antropomórfico. Consigo olhar para uma oliveira e ver facilmente muitas figuras humanas. Adoro a forma como os troncos se entrelaçam”, diz o aguarelista que, há dois anos, deu início a uma série de trabalhos, que intitulou de “Árvores Mutiladas”. Com esta coleção, Júlio Jorge pretende alertar para o facto de “muitas árvores centenárias, que formam parte do património da nossa região, estarem a ser arrancadas por motivos puramente económicos”.
Sejam rostos de São Cristóvão ou oliveiras do Alentejo, Júlio Jorge pinta sempre de pé. “Antigamente, trabalhava sentado. Quando chegava ao fim do dia, estava cheio de dores na região cervical. Depois de ler um livro sobre o pintor Lucian Freud, a minha grande referência em termos de retrato, fiquei a saber que ele também sofria de dores horríveis na região cervical. Segundo essa biografia, o médico aconselhou-o a pintar de pé e, a partir daí, as dores desapareceram. As minhas também desapareceram desde que comecei a pintar de pé”, conta Júlio, que descreve a sua pintura como figurativa e provida de um grande realismo e minúcia. Através da sua técnica apurada, o pintor pretende que a sua arte “tenha um caráter intervencionista e que faça as pessoas refletirem, por isso escolho temas que se centram em problemas que estão a acontecer no meu país e, mais especificamente, na minha região, o Alentejo”. Nos últimos anos, Júlio Jorge participou em várias conferências e palestras em que fala sobre o seu método de trabalho como aguarelista. No seu currículo, também constam vários artigos publicados em revistas internacionais da especialidade. Além disso, é sócio e membro fundador da Associação de Aguarela de Portugal (AAPOR), entidade da qual é presidente desde 2020.
Mesmo tendo a possibilidade de viver e trabalhar em qualquer parte do mundo, Júlio Jorge não troca São Cristóvão por nada. “Gosto muito de cá estar. Aqui, estou no meu mundo”, diz, antes de revelar que, dentro de poucos meses, irá abrir o seu atelier no centro da aldeia, num espaço disponibilizado pela Junta de Freguesia de São Cristóvão. Quem visitar o atelier de Júlio Jorge, ficará a conhecer o trabalho de um artista desta aldeia alentejana, que é também um dos maiores aguarelistas do mundo.