Marco Silva

Situada na faixa litoral que separa a ria de Aveiro do oceano Atlântico, a Torreira é uma vila e freguesia da Murtosa, distrito de Aveiro. O município da Murtosa possui uma relação ancestral com a água, a qual ocupa cerca de 20% da sua área territorial. O expoente máximo desta relação é o barco moliceiro, um dos principais elementos da identidade cultural da região de Aveiro. Considerada a “Pátria do Moliceiro”, a Murtosa orgulha-se do seu património histórico e cultural. Desde o século XIX que os mestres construtores navais desta região lagunar se dedicam à construção de barcos moliceiros. Na época, a apanha do moliço, uma alga aquática usada como fertilizante dos terrenos agrícolas, era uma das principais atividades empregadoras na região de Aveiro. Tornou-se necessário criar um barco que facilitasse este trabalho, e foi neste contexto que se criou uma nova embarcação: o moliceiro. Com as bordas baixas (para agilizar o carregamento do moliço) e os painéis pintados na proa e na ré, o moliceiro distingue-se pela sua silhueta elegante, sendo considerado por muitos como uma das mais belas embarcações do mundo. A evolução dos processos agrícolas levou ao progressivo abandono da apanha do moliço na ria de Aveiro e, consequentemente, à quase extinção do barco moliceiro. Segundo dados oficiais, em 1889, estavam registados 1749 moliceiros na Capitania do Porto de Aveiro. Em 1975 eram 30 e, em 1998, eram apenas 22. Graças à atividade turística, deu-se um processo de reinvenção do barco moliceiro, o que evitou que se tornasse uma relíquia de tempos passados. Atualmente, existem cerca de duas dezenas de moliceiros a navegar nos canais urbanos de Aveiro, além de alguns mercantéis. A arte de construir as embarcações típicas da ria atravessou gerações e, hoje, são cinco os mestres construtores que mantêm viva esta tradição. Na Torreira, entre a ria e o mar, encontra-se o estaleiro de Marco Silva, o mestre mais novo em atividade. “Nasci numa casa a meia-dúzia de metros da água”, diz o mestre construtor naval, cuja mãe morreu quando Marco tinha 6 anos. O pai, pescador de profissão, passava longas temporadas na pesca do bacalhau, nos mares gelados do Atlântico Norte. Marco cresceu com a avó paterna na Torreira, onde descobriu cedo a paixão pelos barcos. “Em pequeno, já fazia uns barquitos em esferovite. Mais tarde, comecei a fazer umas miniaturas em madeira fininha”, conta, lembrando que “não tinha ninguém na família que trabalhasse na construção naval”. Além de construir barcos em miniatura, Marco começou a velejar aos 7 anos. “Ia para a escola primária de barco à vela, sozinho. A minha escola ficava a cerca de 2 km. Podia ir pela estrada, mas como a minha paixão era a vela e os barcos, ia de bateira de manhã e voltava à tarde”, lembra Marco, antes de revelar: “A minha avó deve ter passado um tormento comigo”. A paixão pela pesca também surgiu na infância. Marco recorda-se de pescar de barco com o pai, quando este estava presente, e de ganhar o seu primeiro dinheiro na apanha do caranguejo. “A minha avó comprava caranguejo para vender para Espanha. Eu pegava nas nassas [artefacto de pesca para apanhar peixes e crustáceos] e ia apanhar caranguejos. Apanhava 30 ou 40 kg e a minha avó pagava-me ao preço que pagava aos outros pescadores”, diz, concluindo: “Ganhava dinheiro naquilo que adorava fazer. Era uma alegria!”.

Antes de emigrar para o Luxemburgo, aos 17 anos, Marco Silva foi pescador na ria de Aveiro e tirou a cédula marítima. Durante os anos em que esteve emigrado, trabalhou no ramo da floresta, mais concretamente, no corte e abate de árvores, bem como em plantações. “Foi sempre ligado à madeira. Usei muito a motosserra, o que acabou por ser importante para o trabalho que faço aqui. É necessário muita mão de obra de motosserra para se fazer um barco”, explica o construtor naval. No Luxemburgo, a milhares de quilómetros da ria de Aveiro, Marco viria a conhecer Firmino Tavares, um dos mestres construtores de moliceiros. “Quando decidi construir o meu moliceiro, o mestre Firmino disse que me ajudava na construção”, recorda, mostrando-se grato pelo apoio que recebeu do mestre de Pardilhó.

O moliceiro “Marco Silva”, batizado com o nome do seu proprietário, não foi a primeira embarcação construída por Marco. Depois de regressar a Portugal, construiu duas bateiras com os nomes dos seus filhos: “Ricardo Sérgio”, os nomes dos dois filhos mais velhos, e “FátimaM”, o nome da filha. Posteriormente, construiu o seu barco de arte xávega, uma técnica de pesca artesanal que Marco Silva pratica desde 2003, a que deu o nome de “MFátima”, em homenagem à sua mãe. Nessa época, Marco Silva visitava frequentemente o estaleiro do mestre António Esteves, em Pardilhó, simplesmente para assistir à construção de embarcações. “O mestre Esteves sempre se mostrou disponível para explicar alguma coisa ou para emprestar as formas que eu precisasse”, conta Marco. Mesmo tendo aprendido com alguns dos mestres da arte da carpintaria naval na região de Aveiro, como Firmino Tavares, Felisberto Amador e António Esteves, Marco Silva considera que “a maior parte” do seu percurso como construtor naval tem por base o amor e dedicação que tem por esta arte. Após construir os seus barcos, surgiu a primeira encomenda - um moliceiro. Foi a partir daí, em 2014, que se estabeleceu como construtor profissional.

Desde então, entre bateiras, barcos de arte xávega, moliceiros e mercantéis, Marco Silva já construiu cerca de 25 embarcações no seu estaleiro. Atualmente, existem 15 moliceiros a navegar na ria de Aveiro construídos por Marco Silva, sendo incontestável a sua importância na preservação de um símbolo da sua região. O construtor orgulha-se de nunca ter recebido uma reclamação de um cliente, atribuindo este facto ao perfecionismo com que executa o seu trabalho. A vontade obsessiva de atingir a perfeição revela-se ao longo de todo o processo de construção, começando pela escolha das madeiras. “É necessário escolher bem as árvores, perceber quais é que têm os ângulos certos para fazer as cavernas, aquilo a que se chama o esqueleto do barco. Depois de cortar as árvores no pinhal, trago-as para o estaleiro. Começo por montar o fundo e depois aplico as cavernas em cima do fundo. Em seguida, vem o costado do barco e os bordos. Antes de pintar, é necessário lixar todo o barco. De uma forma abreviada, é mais ou menos assim o processo de construção”, explica Marco Silva, que utiliza apenas madeira de pinheiro bravo e manso para construir moliceiros.

Nos dias que correm, o barco moliceiro já não cumpre o seu propósito inicial de transportar moliço para adubar os terrenos agrícolas, mas continua a colorir as águas da ria de Aveiro. No estaleiro de Marco Silva, a atividade de construção e reparação de embarcações tradicionais não dá sinais de abrandar. A maioria dos barcos destinam-se à atividade marítimo-turística, mas há também quem queira ter a sua embarcação tradicional para participar nas regatas organizadas na ria de Aveiro ou simplesmente pela satisfação de possuir um símbolo da região. Independentemente do propósito da embarcação, Marco procura manter-se “o mais próximo possível dos métodos de construção tradicionais”, não abdicando, por exemplo, do pau de pontos, um instrumento de carpintaria naval constituído por uma vara de madeira onde se encontram marcadas todas as medidas necessárias à construção de uma embarcação tradicional. Até à data, o maior barco construído por Marco Silva foi um mercantel, uma embarcação característica da ria, outrora usada para o transporte de carga. Com 18 metros de comprimento por 3,30 metros de largura, este barco foi adquirido por uma empresa marítimo-turística que opera na ria de Aveiro. Este ano, entre janeiro e maio, já construiu duas embarcações, tendo outras tantas encomendadas. No entanto, estas irão demorar mais tempo a serem concluídas, já que nos próximos meses Marco Silva irá dedicar-se, quase exclusivamente, às suas duas outras paixões: a pesca e a vela.

Seja como amador ou profissional, a pesca na ria faz parte da sua vida desde que se lembra. A pesca no mar só surgiu depois de regressar do Luxemburgo. “Fui ver uma companha de arte xávega a laborar e fiquei fascinado”, conta Marco, que se tornou arrais da companha “MFátima” em 2003. A arte xávega, também chamada de “arte cega”, por não serem utilizados quaisquer meios tecnológicos para localizar a presença de cardumes, é uma técnica de pesca artesanal que se pratica há muitas décadas na praia da Torreira. Na companha “MFátima”, trabalham cerca de vinte pessoas, entre homens e mulheres. Normalmente, a faina começa em maio e termina em novembro, dependendo sempre das condições meteorológicas e do mar. A poucos dias de começar mais uma temporada de pesca, Marco Silva não esconde a paixão que tem por esta atividade piscatória: “Estou sempre à espera do dia em que começa a época da arte xávega”.

Além da construção naval e da pesca, Marco Silva é apaixonado por vela. Aprendeu a velejar numa bateira, sem que nunca ninguém o tenha ensinado a manobrar um barco ou a marear as velas. Já em adulto, tornou-se presença assídua nas regatas que se realizam na ria de Aveiro, mesmo quando esteve emigrado no Luxemburgo. “Marcava sempre as minhas férias para estar cá na época das regatas. Nessa altura, tinha uma bateira com a qual ganhei dezoito vezes consecutivas a Regata de Bateiras à Vela”, lembra Marco, que também chegou a participar em regatas com o barco de um amigo. Depois de construir o moliceiro “Marco Silva”, o construtor naval e pescador continuou a participar e a ganhar regatas. Às muitas vitórias, somam-se alguns recordes, como aquele que estabeleceu em 2008, na Grande Regata dos Moliceiros. Marco percorreu as águas da ria, entre a Torreira e Aveiro, em 43 minutos, o melhor tempo alguma vez feito nesta regata. De há uns anos para cá, Marco tem ao seu lado os filhos, Sérgio e Ricardo, ambos apaixonados por vela desde crianças. “Quando éramos pequenos, não íamos no barco, mas vivíamos as corridas como se fossemos lá dentro”, conta Sérgio Silva que, além das regatas, acompanha o pai no dia a dia da construção naval e da pesca. “Eu e o meu irmão crescemos juntos, aprendemos tudo com o nosso pai, sabemos como ele gosta das coisas. No fundo, somos uma equipa perfeita”, diz o filho mais velho de Marco Silva, visivelmente orgulhoso. Uma das maiores dificuldades de quem participa numa regata é a escolha das velas. “O que faz andar o barco é o vento e as velas. Cada barco tem duas ou três velas, umas maiores, outras mais pequenas. Temos de jogar com isso. Quando está muito vento, não podemos levar uma vela muito grande, senão o barco vira. É necessário escolher as velas adequadas ao vento que se espera na regata”, explica Marco Silva, antes de revelar o segredo do seu sucesso: “Um bocadinho de sorte e de saber”.

Seja como construtor de embarcações tradicionais, pescador de arte xávega ou velejador inveterado, Marco Silva é um símbolo vivo da cultura da região de Aveiro. No que depender de si, vão continuar a haver moliceiros na ria, quer seja em atividades marítimo-turísticas ou em regatas, e a arte xávega manter-se-á como uma das principais técnicas tradicionais de pesca marítima em Portugal.

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