A cerâmica assume-se como um dos elementos identitários das Caldas da Rainha. Rafael Bordalo Pinheiro é o nome maior da cerâmica caldense, mas existem muitas outras pessoas que, à sua medida, contribuíram para o engrandecimento desta arte nas Caldas da Rainha. A forte tradição cerâmica reflete-se no elevado número de ceramistas em atividade. Em 2022, foi lançado o livro “Roteiro dos Ceramistas”, que integra mais de uma centena de profissionais desta arte em 76 ateliers existentes no concelho de Caldas da Rainha. Um destes ceramistas conta com uma carreira de mais de seis décadas ligada à cerâmica caldense, sendo por isso um dos seus representantes mais antigos.
Victor Lopes Henriques nasceu em Caldas da Rainha, a 3 de junho de 1947, no seio de uma família numerosa. “O meu pai deixou a minha mãe com sete filhos quando eu tinha 2 anos. Ela, coitada, lá conseguiu sustentar os filhos a trabalhar na agricultura. Era uma sardinha para três. Eu era o mais novo, agora sou o único que estou vivo”, conta Victor que, aos 10 anos, começou a brincar com o barro na oficina dos irmãos. “A primeira peça que fiz foi um boneco de puxar o cordel do Eusébio”, lembra, revelando a sua primeira malandrice.
Aos 14 anos, foi trabalhar para a Secla, uma das principais fábricas de cerâmica das Caldas da Rainha, onde esteve de 1961 a 1972, tendo desempenhado as funções de formista-moldista até chegar a encarregado de secção. Na Secla, uma das maiores e mais criativas empresas da indústria cerâmica da segunda metade do século XX, Victor orgulha-se de ter trabalhado com alguns dos maiores nomes da cerâmica caldense, como Herculano Elias ou Ferreira da Silva. Em 1972, um ano depois de regressar de Angola, onde viveu três anos em serviço militar, Victor Lopes Henriques foi convidado para trabalhar na Fábrica de Faianças Artísticas Bordalo Pinheiro. Apesar de ter melhorado o salário, deparou-se com uma fábrica com muitas limitações. “Em termos de produção, a Bordalo Pinheiro estava 50 anos atrás da Secla”, diz, referindo-se à falta de maquinaria de que a fábrica de faianças sofria nesses anos. Enquanto encarregado da secção de prensas e moldes, Victor sugeriu a compra de várias máquinas, essenciais para a produção, que contibuíram para a modernização da Fábrica de Faianças Artísticas Bordalo Pinheiro. Dezoito anos depois de ter entrado na fábrica de faianças fundada por Rafael Bordalo Pinheiro, Victor assumiu um novo desafio, tornando-se técnico industrial de cerâmica no CENCAL (Centro de Formação Profissional para a Indústria Cerâmica). “O meu papel era prestar apoio técnico de reparação a avarias nas prensas das empresas de cerâmica associadas ao CENCAL, na região de Caldas da Rainha e Alcobaça”, recorda, antes de revelar o seu trabalho seguinte. “Do CENCAL saí para a F. A. Santos Lda., onde trabalhei como assistente profissional de madres e moldes no projeto dos Olharapos da Expo 98”, conta Victor, fazendo alusão aos bonecos inspirados nos monstros míticos dos Descobrimentos, que protagonizavam o espetáculo de animação permanente na Exposição Mundial de 1998, em Lisboa. Embora tenha gostado da experiência, a empresa acabou por fechar as portas em 2001, deixando Victor e outros trabalhadores no desemprego. “Entrei na pré-reforma aos 55 anos”, diz o ceramista, que continuou a desenvolver a sua arte, mas agora por conta própria. Desde então, já trabalhou em diferentes locais na cidade das Caldas da Rainha, como o pavilhão da Expoeste, estando atualmente a trabalhar nas instalações do “Caldas Empreende”, situadas na Rua Manuel de Matos e Sousa.
“A minha especialidade é fazer moldes”, afirma Victor, enquanto mostra algumas das centenas de moldes que compõem a sua coleção. Andorinhas, sardinhas, gatos, lavagantes e galinhas misturadas com zés-povinhos e muitas “malandrices”. Quando se fala de cerâmica das Caldas da Rainha, é incontornável falar do seu carácter fálico e satírico. A origem desta tradição não é clara. No entanto, a versão mais consensual aponta para que tenha sido ideia do Rei D. Luís, na segunda metade do século XIX, fazer executar, na fábrica de Manuel Gomes, a primeira garrafa de faiança explicitamente fálica. Ao longo dos tempos, a cerâmica erótica das Caldas da Rainha tornou-se uma das imagens de marca da louça local. Victor Lopes Henriques é um reconhecido criador das famosas “Malandrices das Caldas”, que incluem os tradicionais bonecos de “puxar o cordel”, ornamentados com um avental que, quando se puxa a corda, revelam “a malandrice escondida”, nas palavras do ceramista. Victor é também um dos sócios-fundadores da Confraria do Príapo, uma associação caldense, independente e sem fins lucrativos, cujo objetivo é “defender, valorizar e promover, com identidade própria, a cerâmica erótica das Caldas da Rainha, de que o falo é a principal peça e símbolo”. O Zé Povinho, figura típica criada por Rafael Bordalo Pinheiro e que se tornou um símbolo do povo português, ocupa um lugar de destaque na sua obra. Tal como os falos, é possível encontrar zés-povinhos dos mais variados tamanhos na estante da sua oficina. Além das “malandrices”, saem igualmente das suas mãos caricaturas de figuras ilustres da nossa sociedade, como Marcelo Rebelo de Sousa ou Francisco Sá Carneiro. Entre todos os trabalhos que realizou, Victor Lopes Henriques destaca o busto de Rafael Bordalo Pinheiro como a sua obra mais importante, não só pela complexidade da peça em questão, mas também pelo facto de ser uma homenagem ao génio de Bordalo Pinheiro.
Apesar de toda a sua experiência e conhecimento, Victor Lopes Henriques lamenta a falta de clientes nos dias que correm. “Estou aqui mais por carolice do que por outra coisa”, confidencia o ceramista, antes de acrescentar: “Quero manter esta tradição enquanto for vivo!”. Para isso, Victor mostra-se disponível para ensinar como se processa toda a feitura das peças de cerâmica, desde o enchimento dos moldes à cozedura, pintura e vidrado das peças. “Gostava que alguém continuasse com esta arte”, declara, ao mesmo tempo que puxa o cordel de um boneco do Eusébio.