Marcelino Sousa

Nascido no Montijo, em 1964, Marcelino Sousa passou os primeiros cinco anos da sua vida no Bairro dos Pescadores, o mais típico desta cidade ribeirinha. Desses tempos pouco se recorda, provavelmente por ser tão novo, mas também porque uma memória de infância se sobrepõe a todas as outras. Na madrugada de 28 de fevereiro de 1969, pouco tempo após a família se ter mudado para um prédio em frente à Praça Gomes Freire de Andrade, Portugal continental foi atingido por um violento sismo, com uma magnitude de 7.3 na escala de Richter. “Recordo-me de ter acordado para fazer xixi e, enquanto estava na casa de banho com a minha mãe, ela gritou: ‘Ai, meu Deus, um tremor de terra!’. Os móveis começaram a cair, os candeeiros a abanar. Todas as pessoas saíram à rua assustadas, umas em pijama, outras nuas, lembro-me de tudo perfeitamente”, conta Marcelino, antes de acrescentar: “Fiquei um bocado traumatizado com isso”.

Filho, neto e bisneto de pescadores, Marcelino Sousa desde cedo mostrou pouca vontade em seguir as pisadas dos seus ascendentes. “Detestava a pesca. A minha vontade era seguir artes. Quando terminei o oitavo ano, pedi ao meu pai para ir estudar para a Escola Artística António Arroio, mas ele não deixou. Disse que era muito novo para ir para Lisboa e eu respondi que não queria ser eletricista, nem médico, nem engenheiro, por isso não ia mais estudar. A partir daí, o meu pai obrigou-me a ir trabalhar com ele para a pesca, dizia que não queria ninguém em casa sem trabalhar”, lembra Marcelino. “Era adolescente e enquanto todos os meus amigos iam de férias, eu tinha que ir para o mar. Na altura, era uma pesca em que se ficava quinze dias no mar. No meio de velhos, enterrado na lama, aquilo era tudo o que não queria para a minha vida”, recorda, num tom bem-humorado. A verdade é que Marcelino passou os anos que se seguiram na faina da pesca. Simultaneamente, começou a trabalhar nos outros negócios da família, o restaurante Casa do Pescador e em quatro bancas de peixe no Mercado Municipal do Montijo.

Todas estas atividades têm em comum o mar e um pescador: António João de Sousa. Pai de quatro filhos, entre eles Marcelino, António teve um percurso distinto da maioria dos pescadores montijenses. “O meu pai era filho de pescadores, mas não eram pessoas com muitas carências, apesar de viverem no Bairro dos Pescadores. O meu avô queria que o meu pai estudasse, mas o meu pai tinha uma paixão enorme pelo mar. Depois de terminar a quarta classe, começou a fugir da escola, ia à pesca sozinho, trazia o peixe e vendia-o. Quando chegava a casa, entregava o dinheiro ao meu avô e ainda levava porrada, por não ter ido à escola”, conta Marcelino, concluindo: “O meu pai tinha a oportunidade de ser o que quisesse, mas escolheu ser pescador”.

A paixão pela pesca não impediu que António João de Sousa desse asas à sua veia de empreendedor. Em 1970, abriu o restaurante Casa do Pescador, onde a sua esposa passou a trabalhar, e, uns anos mais tarde, começou a vender peixe no Mercado Municipal do Montijo. Bem antes disso, já mostrava uma visão negocial apurada. “Ia de barco para Lisboa vender o peixe. Mais tarde, ainda sem carta de condução, comprou um carro e começou a conduzir. Passou a ir de carro para Lisboa. Quando ficou com as bancas, começou a comprar peixe em Lisboa e a trazer para vender no mercado”, relata Marcelino. Mesmo com tantos afazeres e responsabilidades, António João de Sousa nunca deixou de trabalhar como pescador. Com a entrada de Portugal na União Europeia e a consequente adesão à Política Comum das Pescas, o Governo de Aníbal Cavaco Silva implementou uma política de incentivos ao abate da frota pesqueira. Aliciados pelos subsídios da União Europeia, milhares de pescadores abandonaram a pesca e enviaram os barcos para abate. António João de Sousa recusou-se desde o primeiro momento a abater o seu barco, o Lubélia Maria, batizado assim em homenagem à filha com o mesmo nome. Posteriormente, fez um acordo verbal com a Câmara Municipal do Montijo para a doação do Lubélia Maria, no sentido de ser utilizado para fins educativos e turísticos. “A condição que o meu pai estabeleceu para doar o barco foi que, enquanto fosse vivo, seria ele a tratar do barco”, conta Marcelino, prosseguindo: “Foi isso que aconteceu, mas com a chegada de uma nova presidente da Câmara Municipal do Montijo, essa tarefa foi-lhe retirada. O meu pai ia morrendo de desgosto quando soube. Entrou um bocado em depressão depois disso”. António João de Sousa acabaria por falecer em 2013, deixando um legado que continua a inspirar os seus descendentes.

A primeira vez que Marcelino Sousa se afastou da família e da vida piscatória não foi pelos melhores motivos. “Na década de 80, tive problemas com substâncias duras. Não sabia como parar de consumir, não concebia a vida sóbrio. Entretanto, em 1991, deixei de consumir e deixei de beber álcool. Viajei, diverti-me, voltei a ser uma pessoa feliz”, recorda Marcelino, que retomou a atividade no restaurante e nas bancas da família. “Quando o meu pai precisava, ia à pesca com ele. Embora contrariado, tinha outra consciência. Já não era um adolescente”, diz, lembrando que “já era casado quando disse ao meu pai que ia deixar a pesca”. A vida de Marcelino Sousa correu sem sobressaltos até 2012, altura em que voltou a desmoronar-se. “Quando a minha mulher morreu, deixei de ter interesse pela vida. Lembro-me que nada tinha importância para mim, tinha acabado, mas estava vivo na mesma”, conta, acrescentando que o pai morreu no ano seguinte. “Voltei a consumir e a beber álcool”, recorda, antes de explicar como conseguiu voltar a reerguer-se. “Deu-se um clique qualquer em mim e entrei novamente em recuperação. Tive de tratar da questão da autopiedade. O que me aconteceu, acontece a muita gente e, na altura, estava tão egocêntrico que achava que era o maior desgraçado do mundo. Enfim, um bocado de falta de maturidade emocional para lidar com os problemas”. Quando a mãe morreu, em 2015, Marcelino já se encontrava recuperado, tendo conseguido lidar bem com a perda.

Depois de mais uma tempestade, Marcelino Sousa encontrou novamente a bonança. Voltou a trabalhar no Mercado Municipal do Montijo e no restaurante Casa do Pescador com um espírito renovado. Em 2019, o restaurante da família mudou de localização, estando agora situado no rés-do-chão do edifício-sede da Sociedade Cooperativa União Piscatória Aldegalense (SCUPA). No 1º andar deste edifício, encontra-se o Museu do Pescador, um pequeno espaço museológico onde se encontra uma fotografia do bisavô de Marcelino. “Achei que o espaço era perfeito, pois além de ser maior do que o anterior, tem tudo a ver connosco, com a nossa família, com a nossa vida”. Atualmente, um dos dois filhos de Marcelino, André Sousa, está à frente do restaurante Casa do Pescador, sendo que Marcelino dá uma ajuda após fechar as suas bancas de peixe. Com 54 anos de história, a Casa do Pescador mantém-se fiel às suas origens, distinguindo-se pelo ambiente familiar e pela grande variedade de peixe fresco.

O peixe vendido na Casa do Pescador, bem como na Banca do Marcelino, o nome com que Marcelino Sousa batizou o negócio de venda de peixe da família, é comprado todas as madrugadas no Mercado Abastecedor da Região de Lisboa (MARL). Na Banca do Marcelino, é possível encontrar sargos de Peniche, peixe-espada preto de Sesimbra, chocos de Setúbal, cantaril dos Açores, entre outras espécies que habitam em águas portuguesas. Algumas espécies, como o pregado, o robalo e o salmão, provêm de aquacultura, o que é facilmente percetível, segundo Marcelino. “Por exemplo, o pregado de mar não é tão malhado como o de viveiro. Já o salmão, é provavelmente o peixe mais fácil de perceber se é de mar ou de viveiro. O salmão selvagem é rosa, ou melhor, é salmão, como o nome indica. Não é laranja, como este que tenho aqui à venda. Só uma pequena percentagem do salmão que se consome no mundo inteiro é que é selvagem. E essa pequena percentagem é só para privilegiados, não chega ao grande mercado”, explica Marcelino, enquanto amanha uma pescada. Mais de 40 anos depois de ter começado a trabalhar no Mercado Municipal do Montijo, Marcelino Sousa conhece todos os segredos da sua profissão. “Apesar de não gostar de nada que tivesse a ver com peixe quando era mais novo, hoje em dia, gosto imenso de trabalhar com peixe. É algo que me dá prazer porque sei que sou bom naquilo que faço. Tenho imenso gosto e orgulho no meu trabalho”, diz, esboçando um sorriso. Além de trabalhar o peixe, Marcelino destaca a ligação aos clientes como um dos motivos pelos quais gosta daquilo que faz. “Adoro conviver com as pessoas”, conclui, antes de atender uma cliente.

A ligação de Marcelino Sousa ao Montijo é inequívoca, não só pelas suas raízes familiares, mas também pelo seu percurso pessoal e profissional. Essa ligação é reforçada todos os anos no dia 29 de junho, o Dia de São Pedro. Nesse dia, realiza-se uma procissão fluvial, onde várias embarcações de pesca engalanadas deslocam-se do Cais dos Vapores até à base aérea nº 6 para recolher a imagem de São Pedro e regressar ao antigo Cais das Faluas. “Embora não seja religioso, sempre fui uma pessoa de tradições. Cultivo um bocado a onda do São Pedro, que é o padroeiro da terra, e emociono-me no Dia de São Pedro. A procissão e o culto ao santo mexem comigo”, diz Marcelino. “Todos os anos é leiloado um São Pedro pela Associação dos Pescadores e a minha família tem uma grande tradição de arrematar o santo”, acrescenta, resumindo a ligação da família ao santo padroeiro do Montijo.

Quem conhece Marcelino Sousa, sabe da sua paixão pela música. “Lembro-me de ter 10 anos e emocionar-me ao ouvir músicas do Festival da Canção. Na altura, aquilo era visto um bocado como careta, mas a música sempre me emocionou”, diz Marcelino, que se considera um musicólogo. “Procuro conhecer coisas novas. Embora tenha 60 anos, não sou nada o tipo de pessoa da minha idade que só ouve AC/DC, Rolling Stones...”, refere, acrescentando: “Sou de nichos no aspeto musical. Quase todos os anos vou ver concertos e festivais ao estrangeiro. Uso as viagens como pretexto para ver espetáculos ao vivo, é uma das coisas que me dá mais prazer na vida”. Um dos festivais que Marcelino visita regularmente é o Wave-Gotik-Treffen, o maior festival gótico do mundo. “No sábado, vou ao festival Monitor. São seis bandas internacionais emergentes”, diz Marcelino, referindo-se ao festival dedicado à música “minimal wave” e “post punk” que se realiza anualmente em Leiria.

Aos 60 anos, com uma vida marcada por episódios de dor e superação, Marcelino Sousa apenas quer continuar a ser uma pessoa feliz. O entusiasmo com que fala do trabalho na Banca do Marcelino ou de um concerto da banda norueguesa de rock alternativo, Madrugada, é a melhor garantia dessa felicidade.

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