Hugo Raposo

Os primeiros registos da viola da terra, o único instrumento musical típico dos Açores, remontam ao século XVIII. Conhecida também por viola de arame ou viola de dois corações, a viola da terra ´assumiu, ao longo dos anos, uma grande importância social e cultural na vida das gentes açorianas, tornando-se uma companhia indispensável nas horas de lazer e diversão. Distinguindo-se da viola da terra da ilha Terceira, com boca redonda, a viola da terra micaelense, posteriormente adotada pelas restantes ilhas do grupo central e ocidental, possui as aberturas do tampo em forma de dois corações. Segundo se diz, representam o amor entre duas pessoas que se separaram fisicamente, ficando ligadas pelo mesmo sentimento que é a saudade, simbolizada pelo coração que parte (que emigra para o estrangeiro) e o coração que fica. Ao longo dos tempos, a viola da terra, com as suas doze cordas e som característico, afirmou-se como expressão da identidade açoriana. Certificada com a marca Artesanato dos Açores, está atualmente em curso a sua candidatura a Património Cultural e Imaterial da Humanidade da UNESCO.

Na Rua do Peru, em Ponta Delgada, está situada a oficina de um construtor de instrumentos de cordas que, entre reparações e restauros, constrói instrumentos musicais de raíz. Das suas mãos já saíram guitarras de Lisboa, guitarras de Coimbra, violas de fado, bandolins, cavaquinhos, violinos e claro, violas da terra. Hugo Raposo é profissional de luteria, a arte de fabricar ou reparar instrumentos musicais de cordas com caixa de ressonância, sendo o único a construir a famosa viola da terra na ilha de São Miguel.

Natural de Ribeira Grande, onde nasceu há 33 anos, Hugo Raposo cresceu entre Pico da Pedra, freguesia em que ainda reside, e Ponta Delgada. Vindo de uma família “com habilidade para trabalhar a madeira” e ligações à música, este luthier micaelense tinha cerca de 13 anos quando ajudou o pai a construir o seu próprio instrumento, uma viola clássica. Barbeiro há mais de 40 anos, Dinis Raposo é também um nome conhecido do fado nos Açores, tendo tocado inúmeras vezes com José Pracana, consensualmente reconhecido como uma das grandes figuras da história do fado, para fadistas como Celeste Rodrigues, Carlos do Carmo ou António Zambujo. “A arte de construir instrumentos aprendi com o meu pai e depois fiz uma formação na Escola Profissional de Capelas, onde tirei um curso de marceneiro e carpinteiro”, diz Hugo Raposo que, por essa altura, já havia construído o seu primeiro instrumento musical, uma guitarra de Lisboa.

No último ano do curso, quando surgiu a oportunidade de estagiar na oficina de Gilberto Grácio, um dos mais conceituados construtores de guitarra portuguesa, Hugo Raposo não hesitou em partir para o continente. No Cacém, concelho de Sintra, teve o privilégio de aprender com “um mestre com muita sabedoria, que construiu guitarras para grandes nomes, como Carlos Paredes”, diz, acrescentando: “Trabalhar com o mestre Gilberto Grácio foi muito importante. Evoluí muito!” De regresso a São Miguel, sem perspetivas de trabalho na sua área de formação, Hugo Raposo trabalhou, inicialmente, como funcionário de uma estação de serviço e depois chegou a ser lavrador durante alguns anos. Durante este período, nunca deixou de construir e restaurar instrumentos de cordas na oficina da sua casa e chegou a ser responsável pelo restauro de várias peças museológicas integradas no Museu Municipal de Vila Franca do Campo. Até que, há cinco anos, incentivado pela mãe, decidiu abrir uma oficina ao lado da Barbearia – Salão de Cabeleireiro Raposo, propriedade de Dinis Raposo.

Antes de tomar esta decisão, Hugo Raposo construiu muitos instrumentos musicais e aprendeu sobre cada um deles, seja através de pesquisa online ou em conversas com outros construtores. Um desses instrumentos, adquirido pelo Museu Municipal de Vila Franca do Campo, em 2011, é uma viola da terra eletroacústica. Apesar de ter um carinho especial pela viola da sua terra, Hugo tanto faz uma reparação numa guitarra elétrica como constrói um violino. Ao longo do seu percurso profissional, já construiu instrumentos para vários músicos de renome, como José Manuel Neto ou Alfredo Gago da Câmara, e tem encomendas de vários pontos do país e até do estrangeiro. “As encomendas são, principalmente, para os Açores, mas também tenho pedidos do continente e de emigrantes dos EUA e Canadá que requisitam muito as guitarras portuguesas”, revela, enquanto mostra duas tábuas de pau-santo de Madagáscar que serão utilizadas para construir uma guitarra de Coimbra. “Cada guitarra é única, o que faz com que cada uma tenha um som distinto, que depende da reação da madeira. O resultado final é sempre um mistério”, diz, com a humildade de quem está “sempre à procura de evoluir”. Enquanto não está a reparar ou restaurar instrumentos musicais, Hugo Raposo dedica-se, essencialmente, à construção de violas da terra, guitarras clássicas e guitarras portuguesas. “Construir um instrumento é uma oportunidade para deixar a minha marca, porque enquanto este durar, o meu nome vai lá estar”, diz Hugo Raposo, que já deixou a sua assinatura em cerca de centena e meia de instrumentos musicais.

Enquanto construtor de violas da terra, salienta a importância de estimular a aprendizagem nas escolas de um instrumento ligado à cultura açoriana, destacando o trabalho de Rafael Carvalho, músico e professor de viola da terra, na divulgação da viola tradicional açoriana. Na opinião de Hugo Raposo, é necessário “pessoas diferentes com ideias diferentes, que não toquem só folclore”. “Sei que as violas da terra que faço podem tocar outros tipos de música, mas tem de haver músicos para isso”, diz, insistindo na importância de apostar na formação e na divulgação da música e dos instrumentos tradicionais. Até então, Hugo procurou aplicar os seus conhecimentos de luteria para “evoluir o som da viola da terra” e não pretende ficar por aqui. Aos 33 anos, 20 deles dedicados à arte de construir instrumentos de cordas, Hugo Raposo espera, no futuro, poder dedicar-se apenas à construção e pequenas reparações de instrumentos. Enquanto esse dia não chegar, vai continuar a reparar e restaurar instrumentos antigos, “porque não se vende instrumentos novos todos os dias”, aprendendo “sempre algo diferente” em cada trabalho.

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