Gabriel Ferreira

Gabriel Ferreira nasceu em São Mamede, uma aldeia do concelho do Bombarral. Aos 11 anos, após concluir o ensino primário, partiu com a família para a Parede, concelho de Cascais, onde o seu pai trabalhou, durante um ano, como caseiro de uma quinta. Nesse período, Gabriel teve a sua primeira experiência profissional, trabalhando como aprendiz numa oficina de carpintaria. De regresso a São Mamede, foi trabalhar para um agricultor da região, numa quinta onde também trabalhavam muitas crianças da sua idade. “Às vezes, olho para uma criança de 12 anos e penso: como é que andei a cavar de sol a sol com um corpo assim?”, diz Gabriel Ferreira, que semeava trigo e trabalhava em vinhas e pomares, “tudo feito à enxada”. As péssimas condições de trabalho levaram-no a deixar essa quinta, onde trabalhou dois anos, e a mudar-se para uma outra quinta nas redondezas, tendo passado a “ganhar a jorna de homem”, conta Gabriel. “Vinha bem ensinado a trabalhar no meio dos homens. Era uma criança de 14 anos, mas já vinha com essa pedalada”, lembra, acrescentando que, posteriormente, trabalhou para outros pequenos agricultores de São Mamede, antes de ser chamado a cumprir o serviço militar obrigatório.

Começou por assentar praça na Figueira da Foz, seguiu-se o Regimento de Lanceiros Nº2, em Lisboa, onde fez a especialidade de Polícia Militar, até que chegou o dia de partir para Maputo, então Lourenço Marques. Na capital de Moçambique, Gabriel Ferreira trabalhou, inicialmente, como Polícia Militar, patrulhando as ruas da cidade, e depois teve “a sorte de ser convidado para chofer do sub-chefe” da sua companhia, recorda com um sorriso. Enquanto motorista, dispunha de muito tempo livre, que aproveitou para dedicar à música, uma paixão de infância. “Quando cheguei a Lourenço Marques, a primeira coisa que procurei foi uma escola de música”, conta, lembrando que começou a tocar harmónica quando tinha 10 anos. Durante o tempo que esteve em Moçambique, Gabriel aprendeu a tocar acordeão com Eurico Augusto Cebolo – músico, pedagogo na área musical e autor de inúmeros manuais de ensino de música. “Dos 16 aos 17 anos, estudei música na Banda da União Filarmónica de A-da-Gorda. Quando fui para Lourenço Marques, já tinha estudado o solfejo até à lição número 100. É a partir daí que se recebe o instrumento para começar a tocar”, diz Gabriel Ferreira, que se orgulha de ter sido aluno do “Mestre Eurico Augusto Cebolo, um grande professor, grande músico e grande homem”.

Terminado o serviço militar, em 1968, regressou a Portugal, tendo surgido a oportunidade de ir trabalhar como taxista para a Marinha Grande. Entre os muitos serviços realizados, Gabriel Ferreira recorda-se de transportar pessoas até à fronteira, que visavam transpor clandestinamente com a ajuda de indivíduos que asseguravam a passagem ilegal para Espanha, conhecidos como passadores. “Era perigoso. Levava muitas pessoas até à fronteira, umas queriam fugir à guerra colonial e outras apenas procuravam melhores condições de vida em França. A certa altura, pensei: em vez de levar pessoas, vou também emigrar”, lembra, antes de contar a história da aventura que o levou até uma aldeia da comuna francesa de Villefranche-sur-Saône, perto de Lyon. “Fui daqui com um amigo para uma casa em Quadrazais, no concelho do Sabugal. Ficámos na casa de uma senhora chamada Ti Alzira, à espera de oportunidade para passar para o outro lado. Tinha de haver carabineiros (o equivalente em Espanha aos antigos guarda-fiscais) alinhados com o passador do lado de cá. Depois de quatro dias de espera, numa quarta-feira às cinco horas da manhã, fomos para o mato e entrámos em Espanha quando o sol estava a nascer. Chegámos a uma aldeia chamada Navasfrías, um buraco nas montanhas. Ficámos lá uns dias à espera de embarcar num autocarro para Ciudad Rodrigo. Quando finalmente conseguimos, apanhámos o comboio para atravessar Espanha até Irún, na fronteira com França. Oito dias depois de ter saído de São Mamede, escrevi uma carta de Hendaye, a dizer à família que estava em França”.

Na aldeia francesa onde trabalhou cerca de um ano, Gabriel Ferreira começou por trabalhar nas vinhas de onde provêm os vinhos Beaujolais e, mais tarde, arranjou emprego como jardineiro na casa do diretor da Ópera de Lyon. Quando conseguiu juntar algum dinheiro, regressou a Portugal para se casar e partiu novamente para França, agora na companhia da esposa, que foi trabalhar como empregada doméstica. Gabriel Ferreira foi trabalhar para uma fábrica mas, um mês depois, recebeu a notícia que a sogra tinha falecido. “A minha mulher disse que ia regressar a Portugal para cuidar do irmão, e eu pensei: estamos casados há dois meses, vou ficar aqui a fazer o quê?”, conta, sem sinais de arrependimento de ter voltado ao seu país.

Em 1970, já em São Mamede, surgiu a oportunidade de trabalhar numa mercearia e, uns anos mais tarde, empregou-se na fábrica de cassetes Matel, em Caldas da Rainha. Foi aí que trabalhou durante 15 anos e se envolveu na luta pela melhoria das condições de trabalho, como membro da comissão de trabalhadores. Nessa posição, participou em diversas reuniões com membros de sindicatos, muitos deles militantes do Partido Comunista Português, e começou a sentir-se seduzido pelos ideais do partido, ao qual se filiou em 1975. Numa dessas reuniões, em Caldas da Rainha, Gabriel Ferreira e alguns camaradas receberam a visita de Álvaro Cunhal, histórico dirigente do Partido Comunista Português. Na sequência desse encontro, Gabriel decidiu começar a promover a Comissão de Moradores de São Mamede junto da população da aldeia. “Foi com esta comissão que passámos a ter voz nas reuniões da Câmara Municipal do Bombarral”, diz, acrescentando que, mais tarde, esteve por trás da criação da Comissão Organizadora Voluntária do Arranque da Coletividade (COVAC). Esta comissão viria a dar origem ao Centro Cultural Desportivo e Recreativo de São Mamede, cuja construção envolveu “todo o povo da aldeia”, lembra Gabriel Ferreira.

Quando a fábrica de cassetes fechou, em 1986, enveredou por uma carreira de camionista que se estendeu por mais de 25 anos. Primeiro ao serviço de duas empresas de construção civil, distribuindo materiais de construção pelo país, depois na empresa Farinha Irmãos & Martins, transportando pescado do norte de Espanha para Portugal, Gabriel Ferreira fez muitos milhares de quilómetros ao volante de camiões. Enquanto esperava pelo peixe em portos da Galiza, Cantábria ou País Basco, tinha tempo para se dedicar a duas paixões: o acordeão e a poesia. Em Portosín, uma cidade portuária da Galiza, onde chegou a permanecer semanas à espera que os barcos chegassem com o peixe, o comportamento pouco sociável de Gabriel Ferreira despertou a curiosidade do dono de um restaurante que lhe perguntou por que motivo não ia beber uns copos e conviver com os outros camionistas. Quando Gabriel lhe mostrou um caderno repleto de poemas e o acordeão oferecido pela mulher e filhos no seu 50º aniversário, o espanhol ficou impressionado. Uns dias mais tarde, Gabriel foi visitado por um repórter do jornal La Voz de Galicia que pretendia escrever um artigo sobre o camionista português apaixonado por música e poesia. Nesse artigo, pode ler-se: “O importante é conhecer e sentir os temas em questão”, citando Gabriel Ferreira, referindo-se às fontes da sua inspiração para escrever.

A maioria dos poemas que escreveu ao longo dos anos versam sobre a sua vida e, particularmente, sobre a sua terra natal. “Tenho uma grande paixão por São Mamede”, diz, enquanto abre uma pasta com vários cadernos no interior. “O meu gosto pela escrita é de tal ordem que tenho a minha vida toda escrita. Está aqui tudo nestes cadernos”, revela. Além da escrita, Gabriel Ferreira sempre gostou de “fazer umas pinturas na brincadeira”, como é o caso de uma pintura que se encontra no Centro Cultural Desportivo e Recreativo de São Mamede. Nela, é possível ver uma paisagem da aldeia que tanto exalta nos seus poemas. Um deles, sintetiza, em poucos versos, o amor que sente pela sua terra:

“Em São Mamede nasci e cresci

Entre vinhas, pomares, trigais

Aventuras e amores conheci

E é a terra dos meus pais.”

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