Afonso e Matilde Ginja

A produção de figurado em barro de Estremoz, mais conhecida como “Bonecos de Estremoz”, é uma arte popular com mais de três séculos de tradição. Acredita-se que tudo tenha começado quando uma mulher, habituada a trabalhar o barro, se atreveu a modelar pela primeira vez a imagem de um santo a quem era devota. Essa prática espalhou-se entre muitas mulheres de Estremoz, que ficaram conhecidas como “boniqueiras” — artesãs cujo trabalho, apesar da importância cultural, não era reconhecido como um ofício formal. Os santos venerados pelo povo, que tinha poucos recursos para adquirir arte sacra, passaram a ser moldados pelas mãos dessas “boniqueiras” que, mais tarde, começaram também a criar peças inspiradas no quotidiano das gentes alentejanas. Ao longo dos séculos, as técnicas de produção de figurado em barro foram transmitidas de geração em geração, preservando viva uma arte que, desde 2017, é reconhecida pela UNESCO como Património Cultural Imaterial da Humanidade.  

Um dos locais onde se produzem os “Bonecos de Estremoz” é o Atelier Afonso Ginja, situado na Rua Direita, em Estremoz. Nascido em 1949, Afonso Ginja frequentou o curso de escultura na Escola Industrial e Comercial de Estremoz. Após concluir a formação, dedicou-se ao trabalho com mármore, uma matéria-prima abundante na região, tal como o barro. Durante cerca de dez anos, trabalhou numa oficina de mármores, onde adquiriu competências que considera “fundamentais” para a sua carreira como artesão. Mais tarde, incentivado pelo professor Joaquim Vermelho, então diretor do Museu Municipal de Estremoz, Afonso Ginja deixou o mármore para se dedicar ao barro, juntando-se ao irmão, Arlindo Ginja, que já trabalhava com olaria, focando-se na decoração das peças.   

Na oficina onde trabalharam durante 33 anos, Afonso e Arlindo sentiram-se “metidos dentro do século XVIII”, nas palavras de Afonso Ginja, que reconhece o privilégio de laborar no museu, tendo acesso a todo o acervo dos “Bonecos de Estremoz”. “Antes de fazer uma peça, costumávamos observar os outros bonecos do museu”, conta, revelando o profundo respeito que nutre pela história centenária desta arte. Afonso recorda-se de cavar e amassar o barro, para depois modelar as peças e levá-las ao forno, onde permaneciam durante longas horas. “Tínhamos de ficar ao lado do forno cerca de doze horas. No início, a lenha tinha que arder com brasa muito leve; só após sete ou oito horas podíamos aumentar o fogo para que as brasas ficassem vivas”, explica o artesão, admitindo que todo o processo de produção era “uma verdadeira carga de trabalhos”.

Quando, há 12 anos, a oficina situada no atual Museu Municipal Professor Joaquim Vermelho fechou, Afonso Ginja decidiu abrir a sua própria oficina de figurado em barro. Ao seu lado já não estava o irmão Arlindo Ginja, que entretanto se reformara, mas sim Matilde Ginja, esposa de Afonso há 48 anos. Sem qualquer experiência prévia em artesanato, Matilde passou a pintar todos os bonecos modelados pelo marido. Assim como Afonso desenvolveu a sua arte observando as peças do museu, Matilde aprendeu acompanhando o trabalho do marido. 

Apesar da evolução ao longo dos anos, o processo de criação dos “Bonecos de Estremoz” continua a ser minucioso e demorado. Um boneco pequeno leva de dois a três dias para ser concluído, enquanto uma peça maior pode demandar mais de oito dias. Na primeira fase, Afonso molda o corpo, seguido pelos braços, pernas e cabeça. Depois, passa-se à decoração, adicionando os acessórios que conferem personalidade a cada boneco. Após a modelação estar concluída, as peças são levadas ao forno para cozedura. Finalizada essa etapa, Matilde assume a tarefa de pintar e dar vida às obras de Afonso.

Embora os “Bonecos de Estremoz” partilhem muitas semelhanças, cada barrista da cidade alentejana deixa detalhes únicos nas suas criações. Para Afonso Ginja, a sua assinatura está nas formas das peças, especialmente nos rostos e mãos, delicadamente esculpidas, usando teques de madeira. Na oficina que também serve como loja, Afonso e Matilde criam desde os famosos Presépios de Altar e as figuras “Amor é Cego”, “Primavera com Arco” e Nossa Senhora do Ó, até uma variedade de personagens que retratam os ofícios e tradições do Alentejo. Quando o Figurado de Barro de Estremoz foi reconhecido pela UNESCO como Património Cultural Imaterial da Humanidade, as peças “Amor é Cego” e “Primavera com Arco” ganharam destaque internacional. Ainda assim, o casal mantém o compromisso de criar figuras do quotidiano alentejano, como ceifeiras e pastores, além das peças mais emblemáticas. Um exemplo são as representações da vindima, que não faziam parte do repertório tradicional há três séculos, quando a produção de vinho ainda não tinha a importância que tem hoje na agricultura local. Aos 73 anos, com 44 dedicados à arte dos “Bonecos de Estremoz”, Afonso lamenta não saber ao certo quantas peças já criou. Independentemente do número, a sua contribuição para o reconhecimento da arte pela UNESCO é inquestionável.   

Até 2017, quando os “Bonecos de Estremoz” se tornaram o primeiro figurado do mundo a receber a distinção da UNESCO, havia cerca de uma dúzia de artesãos na cidade. Desde então, esse número cresceu significativamente. Para valorizar e preservar esta arte tradicional, foi criado o Centro Interpretativo dos Bonecos de Estremoz, que, segundo Hugo Guerreiro — responsável técnico pela candidatura à UNESCO —, conta com uma forte componente educativa, oferecendo workshops de educação não formal e funcionando também como uma incubadora para jovens barristas.  

Afonso Ginja não esconde o amor que nutre pelo seu ofício e tem como principal objetivo preservar e respeitar o saber-fazer dos bonecos em barro de Estremoz. “Se quiserem ver como se faz, estamos aqui, e temos sempre muito gosto em partilhar”, afirma um dos maiores nomes desta arte. Inicialmente acompanhado pelo irmão e, posteriormente, pela esposa, Afonso construiu uma obra que fala por si, marcada por cores vibrantes e formas únicas. 

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