Emília David
A cidade de Almeirim é conhecida, entre outros motivos, pelas suas virtudes gastronómicas. Destacam-se a Sopa da Pedra, que foi recentemente classificada pela União Europeia como Especialidade Tradicional Garantida (ETG), os enchidos artesanais, os vinhos, o conhecido melão de Almeirim e um pequeno pão de trigo, feito em forno de lenha, com o curioso nome de Caralhota de Almeirim. A designação vem do termo que o povo de Almeirim usava para se referir aos borbotos de lã, parecidos com os pequenos pedaços de massa que ficavam agarrados aos alguidares de barro onde o pão era amassado. A partir desses restos eram feitas pequenas bolas que se coziam na borda do forno. Num tempo em que o povo não se podia dar ao luxo de desperdiçar comida, as Caralhotas de Almeirim surgiram como uma forma de aproveitamento dos poucos recursos alimentares disponíveis. A fama destes pequenos pães deu-se com o progresso da restauração em Almeirim, tornando-se um complemento habitual da afamada Sopa da Pedra. Em 2020, as Caralhotas de Almeirim conquistaram o selo de Indicação Geográfica Protegida (IGP), como reconhecimento da sua genuinidade e qualidade, e estão, atualmente, em processo de certificação para a obtenção do estatuto de Especialidade Tradicional Garantida.
A dois passos da Praça de Touros de Almeirim, há uma casa especializada na confeção do pão típico desta cidade ribatejana. Ostentando orgulhosamente o nome que faz corar alguns clientes, o estabelecimento Caralhotas da Caldeira foi fundado, há cerca de 50 anos, por Emília David, a padeira mais conhecida de Almeirim. Emília já era casada e mãe de seis filhos quando começou a fazer pão para sustentar a família. Incentivada pela sogra, que lhe cedeu o forno e ensinou a fazer pão de milho, a padeira recolhia a lenha, fazia o pão e começou a vender aos vizinhos. A pouco e pouco, o negócio foi prosperando e já era necessária uma bicicleta para distribuir de porta em porta. Uns anos mais tarde, já perto dos 30, abriu a sua própria padaria, a mesma onde continua a trabalhar diariamente. Primeiro por necessidade, depois por paixão, Emília David construiu uma carreira de cerca de cinco décadas, que a própria resume, em tom de brincadeira, da seguinte forma: “Já estou com a caralhota na mão há cinquenta e tal anos!”.
O cheiro a pão quente sente-se à porta do n.º 21 da Rua de Moçambique. À entrada, além da pasteleira, a bicicleta que usou para distribuir o pão típico de Almeirim, há também instrumentos antigos para a confeção do pão, fotografias, sacos de pão e vários recortes de jornais sobre Emília David, ou Dona Emília das Caralhotas, como também é conhecida. A padeira também já foi convidada por vários canais de televisão, onde divulgou as Caralhotas de Almeirim e, mais concretamente, as Caralhotas da Caldeira, o que a leva a dizer: “O meu pão é muito famoso em Almeirim e em todo o lado!”.
Mantendo o mistério em torno das quantidades dos ingredientes, Emília David revela algumas pistas, como a massa mãe, que fica a levedar de véspera, sendo acrescentada aos restantes ingredientes para “dar força ao pão”. Mais do que a farinha, a água ou o sal, o segredo de Emília David está na forma como bate a massa à mão e nas “150 gramas de carinho”, a única quantidade que revela. No livro que escreveu “para deixar aos filhos e netos”, a padeira dá a conhecer os segredos das suas receitas, às quais faz questão de acrescentar essa porção de amor e carinho. As suas mãos talentosas e imaginação inesgotável fazem da casa Caralhotas da Caldeira um local onde as novidades abundam. Entre as variedades de caralhotas feitas por Emília David, destacam-se, por exemplo, a mista de enchidos, feita com enchidos de Almeirim, a caralhota de torresmos ou a de azeitonas, oregãos, azeite e alho. Com a massa das Caralhotas de Almeirim, Emília também cria outras especialidades mais doces, como a caralhota recheada com maçã, canela, açúcar e nozes ou a broa de milho com batata doce. A lista poderia continuar, tantas são as versões criadas pela Dona Emília das Caralhotas.
Aos 74 anos, já não coze o pão de madrugada, mas ainda faz, diariamente, três fornadas de pão. Aos fins de semana, as diferentes variedades de pães são expostas à entrada da padaria e os clientes chegam a fazer fila ao longo da Rua de Moçambique. Ao seu lado está, muitas vezes, a neta Mariana, que “gosta muito de ajudar a avó”, confessa, orgulhosa, Emília David. Também faz questão de enaltecer a ajuda que o marido sempre lhe prestou, mesmo quando trabalhava como pintor de construção civil. Enquanto tende a massa com as mãos, a Dona Emília das Caralhotas revela a sua vontade: “Espero durar até aos cento e tal anos, sempre a cozer pão”, fazendo jus ao poema escrito por si, que termina dizendo “O segredo da caralhota, nunca vos hei-de dizer/Porque hei-de ser velhinha e continuar a cozer”.