Sofia Afonso

Os trabalhos artesanais em escamas de peixe são um produto emblemático do artesanato açoriano. Provenientes de peixes das águas dos Açores, as escamas tomam a forma de flores, das mais variadas espécies deste arquipélago atlântico. A técnica tradicional açoriana de trabalhar as escamas de peixe passou de geração em geração, tendo sofrido uma grande evolução, a partir dos anos noventa, com o aumento do número de turistas no arquipélago. Em 2015, estavam registadas, no Centro Regional de Apoio ao Artesanato (CRAA), trinta e nove artesãs no ativo que efetuavam trabalhos em escamas de peixe, distribuídas pelas seguintes ilhas: S. Miguel, Terceira, Faial, Pico, Graciosa e Flores. Uma dessas artesãs, atualmente com vinte e seis anos de dedicação a esta forma de artesanato, nasceu em Santulhão, no distrito de Bragança, e apaixonou-se pelos Açores quando foi estudar enfermagem para a ilha Terceira.

Sofia Afonso tinha 23 anos quando se mudou de Trás-os-Montes para Angra do Heroísmo e, 3 anos depois, descobriu a arte de trabalhar as escamas de peixe. “Fui a uma feira de artesanato na ilha Terceira e fiquei fascinada com esta arte”, recorda Sofia Afonso, que sempre gostou de artesanato. “Nasci numa zona rural, onde fazer crochet, malhas, ponto-cruz eram coisas características que se transmitiam às meninas”, diz a artesã, que é também enfermeira obstetra no Hospital do Divino Espírito Santo de Ponta Delgada.

Após concluir o curso de enfermagem, iniciou o seu percurso profissional como enfermeira de cuidados de saúde primários em Vila Franca do Campo. Lá, conheceu uma senhora que, ao saber da sua paixão por trabalhos em escamas de peixe, lhe indicou uma amiga que a podia ensinar. “Uma senhora de Ponta Garça teve a amabilidade, sem me conhecer, de me ensinar a arte com muito amor”, lembra Sofia, concluindo: “O povo açoriano é muito generoso!”.

A residir em Ponta Delgada desde 1996, Sofia Afonso fez, durante mais de 20 anos, trabalhos artesanais para oferecer a amigos e familiares, até que, em 2017, foi incentivada a avançar com a candidatura ao selo de certificação da marca coletiva Artesanato dos Açores. Com a atribuição do selo de origem e qualidade, decidiu levar a sua paixão pelo artesanato com escamas de peixe mais além. Candidatou-se e foi selecionada para representar este artesanato no concurso 7 Maravilhas da Cultura Popular, tendo sido uma das finalistas regionais. “Foi uma honra ter sido selecionada”, afirma Sofia Afonso sobre uma das maiores realizações da sua carreira artística. O reconhecimento do seu trabalho como artesã não ficou por aqui, já que foi escolhida pela Marques'Almeida, uma marca de moda britânica fundada por dois portugueses, para aplicar as suas escamas de peixe em alta-costura. Simultaneamente, tem uma parceria com uma empresa de calçado artesanal, a Namorarte, que consiste na ornamentação do calçado com escamas de peixe.

“Já transmiti esta arte, gratuitamente, a várias pessoas. Foi assim que me ensinaram”, diz Sofia Afonso, antes de explicar as diferentes fases da execução de um trabalho em escamas de peixe. “Depois de recolher as escamas que peço para guardar na peixaria, lavo-as durante alguns dias, no mínimo duas vezes por dia, até ficarem incolores e sem cheiro a peixe. Em seguida, é muito importante pôr as escamas a secar à sombra, para não ficarem danificadas pelo sol. Quando estiverem secas, aí sim, podemos começar a recortar as escamas. Podemos recortar com vários tamanhos, vários cortes, picotar, ou seja, criar uma imensa variedade de flores. Depois vamos passar o canutilho, para ajudar a segurar a flor e, só aí, montamos a flor”, conclui, enquanto tinge uma escama com corante alimentar vermelho. Apesar de já ter feito inúmeros trabalhos em escamas brancas, o método tradicional, Sofia Afonso gosta de se recriar e dar um toque de contemporaneidade ao seu trabalho artístico. “Bastam as três cores primárias – o vermelho, o amarelo e o azul – e podemos dar a tonalidade que quisermos à flor”. Utilizando escamas de veja, sargo ou tainha – três espécies comuns nas águas dos Açores – Sofia Afonso cria orquídeas, rosas, amores-perfeitos, girassóis ou hortênsias de várias cores e tamanhos.

Como se não bastasse a sua enorme ligação a uma forma de artesanato tradicional dos Açores, Sofia Afonso também faz presépios de lapinha, outra tradição açoriana. Recorrendo a lapinhas, como não poderia deixar de ser, e a outros elementos marinhos, como búzios, cracas ou ouriços-do-mar, a artesã constrói presépios por encomenda. Com a ajuda da filha, Beatriz Afonso, cria as igrejas e os trajes típicos da região do cliente que encomendou o presépio, como aquele que tem na sua sala, que “tem um pouco dos Açores e um pouco de Trás-os-Montes”. “Quando faço trabalhos de lapinha, só sei que tenho de encaixar tudo harmoniosamente dentro da redoma, nunca sei o que vou pôr, vou inventando, tudo tem de encaixar na perfeição”, diz Sofia Afonso, que também está certificada com selo de origem e qualidade Artesanato dos Açores como artesã de presépios de lapinha.

À exceção das escamas de peixe, as matérias-primas utilizadas por Sofia Afonso nos seus trabalhos artesanais são, maioritariamente, recolhidas por si nas praias e campos da ilha de São Miguel. Desde conchas até musgos e fragmentos de rocha, “tudo ecológico”, a artesã segue a máxima de Lavoisier, “nada se perde, tudo se transforma”, para criar os seus trabalhos. Em relação às escamas de peixe, Sofia Afonso gosta de enaltecer as qualidades desta matéria-prima, que se caracteriza pela “alta resistência e durabilidade”, ao contrário do que aparenta. Os seus trabalhos em escamas vão desde anéis, brincos, colares e gargantilhas até adornos de cabelo e bouquets de noiva. “Já recebi várias encomendas para casamentos”, revela, acrescentando que, segundo lhe disseram, “antigamente fazia-se um arranjo de flores em escamas de peixe para as moças casadouras, as noivas, porem a adorar a Nossa Senhora”.

Ao longo do seu percurso enquanto artesã, Sofia Afonso contou com o apoio da filha Beatriz, que concluiu recentemente o curso de Engenharia Biomédica. Além de ajudar a mãe em vários trabalhos, Beatriz ocupa-se da divulgação e vendas online. “Ela é que me incentivou em várias coisas. É uma parceria, no fundo”, diz Sofia Afonso, enquanto mostra uma imagem do Senhor Santo Cristo dos Milagres em escamas de peixe. Tendo vivido mais de metade da sua vida nos Açores, esta transmontana de Santulhão diz já ter tido várias oportunidades de viver em outros sítios, mas optou por ficar em São Miguel. “Adoro viver aqui”, afirma, com um sorriso. Relativamente aos trabalhos em escamas de peixe e aos presépios de lapinha, mais do que outras parcerias com marcas de renome, Sofia Afonso apenas quer continuar a ver o artesanato como uma terapia. “Sou enfermeira de formação, enfermeira obstetra, isto é um hobbie que faço com muito amor e carinho”, diz, resumindo o seu percurso desde que chegou ao arquipélago dos Açores.

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