Luís Valente
Escondida numa rua estreita do centro histórico de Lisboa, encontra-se a oficina de um dos poucos artesãos lisboetas dedicados ao ofício de encadernar, dourar e restaurar livros. Luís Valente tinha catorze anos quando começou a trabalhar nesta oficina, após ser expulso da escola por mau comportamento. Poucos anos antes, no dia 25 de abril de 1974, estava no Largo do Carmo com o pai a acompanhar de perto a Revolução dos Cravos. “Passou-se da época em que não se podia levantar a garimpa para a época em que uma pessoa fazia o que lhe apetecia”, diz Luís Valente, que não gostava da escola e preferia desfrutar da liberdade conquistada pela Revolução de Abril. Ao mesmo tempo, começou a fazer alguns biscates para ganhar a vida – primeiro ajudando a descarregar hortaliça de camionetas na Praça da Ribeira e depois numa oficina de mecânica –, até surgir a oportunidade de trabalhar como encadernador-dourador na firma Cabral & Alves, Lda.
Já lá vão quarenta e quatro anos desde que Luís Valente queimou os dedos pela primeira vez nos ferros de dourar. No processo de composição manual, é indispensável a utilização do componedor, utensílio sobre o qual um compositor dispõe as letras com que vai formando as linhas da composição. Este instrumento tipográfico, assim como as letras, é aquecido a uma temperatura aproximada de 100°C e, segundo Luís Valente, a única forma de uma pessoa manuseá-lo sem se queimar constantemente é calejando os dedos.
Trabalhou durante dezoito anos como empregado da firma Cabral & Alves, Lda. e, quando tinha trinta e cinco anos, comprou-a, após o falecimento do seu patrão. Mantendo o mesmo nome, a firma com sede na freguesia de Misericórdia, Lisboa, mudou essencialmente a abordagem artística ao ofício de encadernador-dourador. Apesar de continuar a fazer o mesmo tipo de trabalhos, isto é, encadernação de livros, restauro de obras antigas, gravação de títulos e motivos ornamentais, a ouro, sobre encadernações, entre outros, Luís Valente reuniu ao longo das últimas décadas a maior coleção de ferros de dourar do país e cerca de uma centena e meia de tipos de letra em bronze. Manuseadas pelas mãos habilidosas de Luís Valente, estas ferramentas dão forma a peças únicas e exclusivas. “Gosto de trabalhar descontraído, reinar com o cliente, não gosto de trabalhar sob pressão”, diz enquanto dispõe as letras no componedor. Os clientes da empresa Cabral & Alves, Lda. vão desde colecionadores particulares e alfarrabistas até membros do clero e da realeza. A única coisa que Luís Valente garante a todos, além da excelência do seu trabalho, é um tratamento igual, sem discriminações nem subserviências, e sempre com boa disposição.
A abordagem artística de Luís Valente revela-se em todo o seu esplendor nos trabalhos premiados na Bienal Mundial de Encadernação Artística, na qual participam cerca de oitocentos encadernadores de todo o mundo. Um desses trabalhos, feito apenas com papel, cartão e ouro de 23 quilates, demorou mais de trezentas horas a fazer, fora do horário de trabalho. “Divirto-me à brava a fazer isto”, diz Luís Valente. Os trabalhos de encadernação artística que Luís Valente executa, sem qualquer formação específica para o efeito, mais do que obras de arte, são verdadeiros hinos ao livro.