Grupo Coral da Liga dos Amigos da Mina de São Domingos

A aldeia de Mina de São Domingos, no concelho de Mértola, deve a sua existência à exploração mineira que ali se desenvolveu ao longo de vários séculos. Em 1864, a empresa britânica Mason & Barry deu início à exploração moderna dos jazigos da Mina de São Domingos, tendo extraído mais de 20 milhões de toneladas de minério, principalmente cobre, enxofre, zinco e chumbo. Até à década de 1930, esta foi a maior exploração mineira em Portugal, chegando a empregar mais de três mil pessoas. Junto ao complexo mineiro, foi construída uma aldeia para albergar os trabalhadores das minas e as suas famílias. Na aldeia de Mina de São Domingos, viviam perto de dez mil habitantes, que dependiam dos filões de pirite que o subsolo daquelas terras continha. A mina tornou-se o motor de desenvolvimento da aldeia e, como consequência disso, foram criados um hospital, um cineteatro, uma central elétrica, entre outros serviços. Para fazer a ligação entre a mina e o porto fluvial do Pomarão, que permitia o escoamento do minério através do rio Guadiana, foi construída uma das primeiras linhas férreas em território nacional. Com o encerramento da exploração mineira, em 1966, uma grande parte da população abandonou a aldeia em busca de trabalho. Muitas dessas pessoas fixaram-se na periferia de Lisboa, sendo que Sacavém tornou-se rapidamente um grande polo de atração para as gentes de Mina de São Domingos e povoações limítrofes.

Manuel Martins foi um dos muitos habitantes da aldeia mineira que migrou para Sacavém. Nascido em 1949, no seio de uma família pobre e numerosa, Manuel não teve uma infância fácil. “O meu pai era mineiro, ganhava muito pouco. Fartava-se de trabalhar, mas não nos matava a fome”, diz, acrescentando que, apesar dos pais serem analfabetos, “quiseram dar aos filhos, pelo menos, a 4ª classe”. Aos 11 anos, terminou a escola primária e partiu para Sacavém, tendo ido viver com uma irmã, que já havia partido, há algum tempo, de Mina de São Domingos. No espaço de um ano, trabalhou numa marcenaria e numa serralharia, tendo sido despedido de ambos os empregos por se revoltar perante as injustiças que enfrentou. “A minha irmã dizia-me que se continuasse a portar-me daquela maneira ia para a terra. Por isso, portava-me ainda pior”, conta, revelando que a irmã perdeu a paciência quando foi despedido pela segunda vez. De regresso a Mina de São Domingos, a terra onde queria estar, Manuel viveu cerca de dois anos na sua aldeia natal. Desses tempos, recorda-se de varrer as ruas quando os patrões ingleses visitavam a terra. “Estava tudo sujo o ano inteiro, mas quando chegavam os ingleses, era tudo varrido e caiado. Era mesmo só para inglês ver”, diz, soltando uma gargalhada. Apesar de não querer abandonar a sua aldeia novamente, Manuel acabou por perceber que não tinha outra opção, visto que o pai não queria que os filhos fossem para a mina trabalhar. “No verão, a minha irmã foi de férias à terra e perguntou-me se queria voltar com ela para o Prior Velho, para onde se tinha mudado uns anos antes. Eu disse que não tinha outro remédio e vim”, recorda Manuel, que estava a poucos dias de completar 15 anos quando deixou Mina de São Domingos.

Se os dois primeiros empregos duraram pouco tempo, o terceiro durou até à reforma. Entre 1965 e 2014, Manuel Martins trabalhou como serralheiro civil na empresa Vasco Pessoa. Ao longo deste período, o inconformismo perante as injustiças laborais foi sempre uma constante. A luta sindical, porém, só veio mais tarde. “Fui dirigente sindical do Sindicato de Metalúrgicos de Lisboa desde 1979 até me reformar”, diz Manuel, antes de revelar o seu segredo. “Nasci com um carimbo. Passei muita fome, mas deixei de comer para dar aos meus irmãos. Já tinha este sentimento de justiça em miúdo, é esse o meu carimbo”.

Durante todos estes anos, o cante alentejano esteve sempre presente na vida de Manuel Martins. Cantado em coro e sem recurso a instrumentos musicais, o cante alentejano é um género musical tradicional do Alentejo, que foi reconhecido como Património Cultural Imaterial da Humanidade pela UNESCO, em 2014. Através das suas modas, o cante guarda e conta a história das gentes do Alentejo, sendo uma manifestação cultural do povo desta região. Manuel tinha 8 anos quando entrou para o grupo infantil de cante alentejano de Mina de São Domingos. Tal como muitos outros alentejanos, procurou manter viva essa paixão de infância quando se mudou para Sacavém. “Tínhamos necessidade de nos encontrarmos, de beber uns copos e cantar umas modas”, diz, lembrando que o cante alentejano se ouvia nas ruas e nas tabernas.

Em 1973, com a fundação da Liga dos Amigos da Mina de São Domingos (LAMSD), uma associação que, na altura, tinha como objetivo criar um espaço de convívio e partilha entre o povo alentejano, Sacavém passou a ter uma das primeiras associações de alentejanos na zona de Lisboa. Manuel Martins tornou-se sócio da LAMSD e, em 1976, foi um dos fundadores do Grupo Coral de Cante Alentejano da Liga dos Amigos da Mina de São Domingos. “Fomos à procura dos cantadores da nossa terra, uns moravam no Barreiro, outros em Caxias, outros em Sacavém, outros no Prior Velho”, conta Manuel, lembrando que se formou um grupo de cerca de trinta membros, sendo a maioria proveniente de Mina de São Domingos.

A mudança de residência para Paio Pires, concelho do Seixal, manteve-o afastado do grupo quase 30 anos. Durante esse tempo, participou em outros grupos e fundou um, chamado Em Cantos do Alentejo, com as duas filhas a quem passou o “bichinho” pelo cante alentejano. “Ainda não sabiam falar e já cantava para elas”, lembra, revelando que uma delas é ensaiadora do grupo das Cantadeiras de Essência Alentejana, em Almada. Há cerca de 5 anos, Manuel Martins regressou a Sacavém para se tornar ensaiador do grupo local que ajudou a fundar, o qual se reúne, uma vez por semana, numa sala multiusos da União das Freguesias de Sacavém e Prior Velho.

Atualmente, o Grupo Coral de Cante Alentejano da Liga dos Amigos da Mina de São Domingos é constituído por 21 elementos. Ao longo dos anos, alguns dos membros mais antigos foram dando lugar a pessoas de outras regiões do Alentejo, como Serpa, Viana do Alentejo ou Portalegre. No entanto, alguns cantadores deste grupo conhecem-se há mais de 40 anos, como é o caso de Artur Horta e António Batista.

Artur Horta nasceu na Moitinha, um pequeno lugar a 800 metros de Mina de São Domingos, onde foram instalados os moinhos trituradores de minério. Tal como Manuel Martins, Artur considera que nasceu com um “carimbo” que o tem acompanhado ao longo da vida. “Assim que fiz a 4ª classe, o meu estágio foi guardar porcos em Espanha. Estive lá um ano, não gostei e voltei para casa”, conta, recordando que estava prestes a fazer 14 anos quando se mudou para Camarate. “Quando vim para cá morar, fui para casa da minha irmã. Mais tarde, a mina fechou e os meus pais vieram também, tendo comprado uma barraca no Bairro de Santo António, que era conhecido como Olival da Rata. Foi aí que vivi até à idade de ir para a tropa”, recorda, antes de contar a luta que travou pela melhoria das condições de vida no seu bairro. “Quando voltei do Ultramar, juntei-me a algumas pessoas do bairro e formámos uma comissão de moradores para acabar com as barracas. Posteriormente, criou-se uma associação de moradores e hoje temos uma cooperativa, da qual ainda faço parte. Além de ser secretário da Cooperativa de Habitação e Construção 26 de Abril, que foi responsável pela erradicação das barracas existentes no Bairro de Santo António, Artur também esteve por trás da formação de uma comissão de trabalhadores na empresa em que trabalhou 42 anos, a Sociedade Lisbonense de Metalização. “Aquele tal carimbo que ninguém me ensinou, obrigou-me a fazer alguma coisa para melhorar as condições de trabalho naquela empresa”, diz Artur, que também foi delegado sindical “durante muitos anos”.

António Batista tem 88 anos e nasceu na Achada do Gamo, o local onde se situava o centro metalúrgico de processamento do minério extraído da Mina de São Domingos. Filho de um técnico de laboratório da empresa mineira Mason & Barry, António teve uma infância um pouco mais privilegiada do que Manuel ou Artur. “Diziam que a minha família era rica porque tivemos sempre pão”, refere António, que seguiu as pisadas do pai ao juntar-se a ele no laboratório químico da mina. Trabalhou na Mason & Barry entre os 16 e os 22 anos, com interrupção para cumprir o serviço militar, até ser colocado perante um dilema: tornar-se mineiro ou procurar trabalho longe da sua terra natal. “Quando me quiseram meter lá em baixo no buraco, eu disse que nem pensar em tal coisa. Entendi que era muito novo para morrer debaixo de terra”, conta, acrescentando que, entretanto, surgiu a oportunidade de trabalhar no Laboratório de Investigação de Mineralogia e Cristalografia, em Lisboa. Convidado por um engenheiro técnico que conheceu no laboratório da Mina de São Domingos, António foi trabalhar para Lisboa, tendo começado por residir em Sacavém. Como tinha apenas o ensino primário, sentiu necessidade de voltar à escola, o que o levou a tirar um “curso de laboratório, em regime noturno, na antiga Escola de Fonseca Benevides”. Mais tarde, foi contratado para trabalhar no laboratório de uma empresa petrolífera, onde esteve até se reformar.

Artur e António conheceram-se através da iniciativa Salas de Estudo, que foi criada para ajudar adultos que pretendiam ir além do ensino primário. Durante uma aula de Ciências Naturais, enquanto o professor ia dando exemplos de moinhos de água, um aluno ia reconhecendo os lugares como sendo da sua terra. Concluíram que vinham do mesmo lugar. O professor era António Batista, um dos elementos mais velhos do Grupo Coral de Cante Alentejano da Liga dos Amigos da Mina de São Domingos, e o aluno era Artur Horta. “O Batista disse-me que estavam a precisar de pessoal no grupo coral e que eu podia juntar-me. Eu disse que nunca tinha cantado alentejano, mas ele acabou por conseguir convencer-me”, diz Artur, contando que, graças ao convite de António Batista, teve a possibilidade de recuperar as suas raízes alentejanas. “Desde que fui viver para Camarate até encontrar o Batista, com cerca de 30 anos, perdi muito contacto com o Alentejo”, diz, antes de acrescentar: “Depois de entrar para o grupo coral, visitei o Alentejo mais vezes num ano do que nos 15 anos anteriores”. Posteriormente, António convidou Artur para fazer parte dos orgãos sociais da Liga dos Amigos da Mina de São Domingos e, mais tarde, Artur assumiu o cargo de tesoureiro desta coletividade.

“Tenho ofertas perto de casa para ensaiar outros grupos a ganhar dinheiro, mas este grupo é mais importante para mim. É um sentimento muito forte de ligação à minha terra”, diz Manuel Martins, que vem todas as quartas-feiras do outro lado do rio para ensaiar o Grupo Coral de Cante Alentejano da Liga dos Amigos da Mina de São Domingos, em Sacavém. O ensaiador do grupo coral acredita que é preciso uma “carolice” muito grande para se fazer parte de um grupo de cante alentejano. “O fado também é Património Cultural Imaterial da Humanidade, mas há uma diferença. Normalmente, os fadistas cantam para ganhar dinheiro. Nós pagamos para cantar”, diz António Batista, frisando que “as câmaras municipais deviam estar mais abertas a ajudar os grupos de cante alentejano”. Apesar das dificuldades, a Liga dos Amigos da Mina de São Domingos tem tomado inúmeras medidas no sentido de preservar e divulgar o cante, tais como a realização de intercâmbios com outros grupos corais ou a criação de um grupo juvenil de cantares alentejanos - o Grupo Juvenil Já Cá Cante do Agrupamento de Escolas Eduardo Gageiro - que também é ensaiado por Manuel Martins. Além disto, destacam-se outras iniciativas, como a Semana Cultural do Alentejo, em Sacavém, que já vai na sua 34ª edição, ou a atribuição do nome “Rua da Mina de S. Domingos” a uma rua de Sacavém.

Meio século depois da fundação da Liga dos Amigos da Mina de São Domingos, o espírito de companheirismo e amizade continua a imperar entre os seus membros. A coletividade e o seu grupo coral têm feito o que podem para honrar a história da Mina de São Domingos, bem como para dar futuro ao cante alentejano, transmitindo-o às gerações mais novas. Manuel, Artur e António nunca esqueceram a terra que os viu nascer e isso sente-se quando cantam, por exemplo, a canção “Alentejo, Alentejo”. “O cante alentejano foi reconhecido como Património Cultural Imaterial da Humanidade em 2014, mas já era património do povo alentejano há séculos”, diz António Batista, antes de recitar um excerto de uma moda da autoria de Manuel Martins: “O cante foi promovido, silêncio vamos cantar, cantamos o que sentimos, sai da alma garantimos, por isso é imaterial”.

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