Padaria Celeste
A história de Vale de Ílhavo, uma aldeia do município de Ílhavo, está intimamente ligada ao alimento mais popular do mundo: o pão. A facilidade de acesso a recursos hídricos levou à construção de muitas azenhas, não sendo por isso de estranhar a afamada tradição de produção de pão, mais concretamente, padas e folares. As padas de Vale de Ílhavo são pequenos pães de trigo, cozidos em forno de lenha, que se distinguem pelo formato peculiar e pela côdea dourada, mole e ligeiramente enfarinhada. Os folares, enquanto bolo típico da época pascal, dispensam apresentações. Em Vale de Ílhavo, chegaram a existir mais de três dezenas de padeiras em atividade, sendo que a profissão se tornou um dos símbolos da localidade. Não é por acaso que, no centro de Vale de Ílhavo, se encontra a Estátua da Padeira, em homenagem às muitas mulheres que se dedicaram à arte do fabrico tradicional de pão. Celeste Sacramento, descendente de uma família de padeiras, é uma dessas mulheres.
Natural de Vale de Ílhavo, onde nasceu em 1927, Celeste Sacramento era ainda criança quando começou a ajudar a mãe na venda das famosas padas e folares. Nesse tempo, a venda era feita com as cestas do pão à cabeça, de porta em porta, durante a madrugada e manhã. Mais tarde, Celeste passou a percorrer as ruas da freguesia de bicicleta, com os cestos cheios de pão. Casou-se aos 19 anos e foi mãe de três filhos: Maria Alcina, Francisco e Filomena. Após a morte do marido, no dia em que este celebrava 57 anos, Celeste continuou a trabalhar na padaria a que deu nome, Padaria Celeste. Tornou-se numa das principais referências da “Rota das Padeiras”, uma iniciativa organizada pela Câmara Municipal de Ílhavo que visa promover as padeiras de Vale de Ílhavo e as iguarias gastronómicas desta localidade. Tal como a avó, Filomena Caneira, e a mãe, Filomena de Jesus Leopoldina, Celeste Sacramento foi padeira praticamente toda a vida, tendo falecido aos 81 anos.
Dezasseis anos volvidos da morte de Celeste Sacramento, o seu legado permanece vivo graças aos seus filhos. “Quando a minha mãe faleceu, o meu irmão e a minha cunhada mantiveram a padaria aberta, mas depois a minha cunhada começou a ter problemas de saúde e resolvemos, entre os irmãos, fechar a porta”, conta Maria Alcina Sacramento, a filha mais velha de Celeste. Nascida em 1945, em Vale de Ílhavo, Maria Alcina teve um percurso idêntico ao da sua mãe até casar e emigrar para os Estados Unidos. “Aos 9 anos, já ia com a minha avó Filomena vender pão com a canastra à cabeça. Depois passei a andar de bicicleta, com um cabaz de pão atrás. A minha infância e adolescência foram passadas em Vale de Ílhavo, a vender pão com a minha mãe”, recorda Maria Alcina, que esteve emigrada cerca de quatro décadas. Durante esse tempo, nunca esqueceu as suas raízes. “Enquanto estive emigrada, vinha sempre a Portugal nas férias. Tanto vinha e gostava que fizemos uma casa com a ideia de regressarmos depois de nos reformarmos. A nossa ideia era vivermos seis meses cá e seis meses em Nova Jersey, onde também tenho casa”, lembra Maria Alcina, cujo marido faleceu há 16 anos. Após ficar viúva, decidiu que não queria ficar em Nova Jersey, apesar da vontade dos dois filhos. Há cerca de 8 anos, assumiu o negócio da família, mantendo o nome de sempre: Padaria Celeste.
“A Câmara Municipal de Ílhavo sugeriu que colocasse uma placa com o meu nome à porta, mas eu não aceitei. Chama-se Padaria Celeste, quis manter o nome da minha mãe”, conta Maria Alcina, sem esconder o orgulho em Celeste Sacramento. “Há pessoas que só se tornam boas quando morrem, mas ela já era boa em vida. Dava comida aos pobres, a instituições e estava sempre pronta a ajudar o próximo, era conhecida por muita gente”, refere com um sorriso. A Padaria Celeste está aberta todos os sábados, sendo que, na época da Páscoa, mantém-se de portas abertas durante toda a semana. Maria Alcina admite que, no início, foi difícil adaptar-se a uma nova vida, mas hoje está “com raízes firmes”.
Atualmente, as padas e folares de Vale de Ílhavo continuam a sair dos fornos a lenha da Padaria Celeste graças à determinação de Maria Alcina, mas não só. Ao seu lado, está o irmão Francisco Sacramento, o único dos três irmãos que não emigrou para os Estados Unidos, e algumas pessoas de confiança. Ao longo do ano, a cozedura do pão está a cargo de Adriano Freitas e Ângela Freitas, “um casal cinco estrelas”, nas palavras de Maria Alcina. Já a tarefa de fazer as massas está entregue a um dos seus sobrinhos, Paulo Rei. Estas pessoas são a força motriz que permite que esta padaria histórica continue a funcionar, honrando o legado de Celeste Sacramento, Filomena Caneira e Filomena de Jesus Leopoldina, as três padeiras da família. Apesar de saber amassar e cozer o pão desde criança, Maria Alcina concentra-se nas vendas, deixando o trabalho mais pesado para os seus colaboradores. “Com a idade que tenho, não me vou pôr a trabalhar nos fornos”, diz Maria Alcina.
Na Páscoa, a época de maior azáfama na Padaria Celeste, a equipa é reforçada com alguns elementos, a fim de dar vazão às encomendas do tradicional folar de Vale de Ílhavo que chegam de diferentes pontos do concelho. A Paulo Rei, junta-se a esposa, Susana Gregório, e o filho mais novo, André Rei, que estuda no 10º ano, sendo que a filha, Mariana Rei, que trabalha atualmente como enfermeira, também ajudou durante alguns anos a tia Alcina na altura da Páscoa. Depois, há ainda Rúben, Luís e José. Rúben está encarregue de ajudar Adriano e Ângela na montagem dos folares, que passa por colocar ovos inteiros no topo do bolo, previamente cozidos com casca de cebola por Luís e José. “Aqui ninguém é padeiro”, declara Susana Gregório, resumindo a descrição da equipa de trabalho. Maria Alcina, que também teve outras ocupações durante a maior parte da sua vida, tal como o irmão Francisco, lidera esta equipa que dá vida à Padaria Celeste.
A partir das instalações situadas na Rua Nossa Senhora do Alívio, em Vale de Ílhavo, a equipa de trabalho desta padaria continua a honrar uma das tradições da aldeia, bem como a história de uma família de padeiras. Olhando para a sua equipa com respeito, Maria Alcina Sacramento desabafa: “Estou contente! Enquanto pudermos, vamos manter aquilo que a minha mãe construiu com tanto sacrifício”.