Vânia Duarte
Acredita-se que o fado tenha nascido nos becos e vielas dos bairros mais antigos de Lisboa, despontando como um novo estilo musical, fruto do caldeirão cultural que era a capital portuguesa no início do século XIX. Até surgirem as primeiras casas de fado, nas primeiras décadas do século XX, este era cantado de forma espontânea, na rua e nas tabernas frequentadas por boémios, marginais e prostitutas. Com o decreto-lei de 1927, que determinou a obrigatoriedade de posse de carteira profissional para atuar em espaços públicos, consolidou-se o processo de profissionalização dos intérpretes. Nas décadas seguintes, o cinema, o teatro e a rádio vão projetar o fado para o grande público, permitindo aos fadistas passarem das vielas e tabernas para o estrelato. As casas de fado multiplicaram-se nos bairros históricos da cidade, como Alfama, Mouraria e Bairro Alto, tornando-se verdadeiras escolas do fado. Todos os grandes fadistas passaram por estas casas históricas que contam um pouco da história do último século da cidade. Em Alfama, o bairro mais antigo de Lisboa, existem várias casas de fado por onde já passaram grandes nomes da história do estilo musical mais emblemático do nosso país. Uma delas chama-se Casa de Linhares e tem como proposta “oferecer tudo o que o nosso país tem de melhor”, segundo Vânia Duarte, co-proprietária e fadista residente na Casa de Linhares.
Natural de Benavente, Vânia Duarte não tem dúvidas em afirmar que o pai, “o grande amante de fado lá em casa”, foi o principal responsável pela sua ligação ao fado. “Nós tínhamos como que uma tradição, aos domingos ouvíamos muita música e, entre a que ouvíamos, o meu pai deu-me a conhecer o fado”, diz, acrescentando, “comecei a ganhar amor à nossa música”.
Quando tinha 12 anos, estreou-se em público, acompanhada à guitarra portuguesa e à viola, na festa de aniversário do padrinho, em Almeirim. “Depois comecei a ir a todos os encontros de fados que aconteciam na região onde cresci, no Ribatejo”, conta Vânia que, pouco tempo depois, entrou pela primeira vez numa casa de fados, o Sr. Vinho. Incentivada pelos pais, frequentadores habituais de casas de fados, e por “um dos violistas da casa”, Vânia cantou e, definitivamente, entrou no mundo do fado. O violista que “engraçou” com a menina ribatejana apaixonada pelo fado foi Jorge Fernando, figura incontornável na história deste estilo musical. Além de um proeminente violista, que tocou duas décadas ao lado de Amália Rodrigues, Jorge Fernando é fadista, produtor e um dos compositores mais cantados da música portuguesa. Depois da estreia no Sr. Vinho, Vânia passou a visitar com regularidade a casa de fados onde Jorge Fernando era fadista residente, e “começou-se a criar uma bonita amizade”. Nessas noites de fados, que se estendiam “até às três ou quatro da manhã”, Vânia começava por sentir “a adrenalina a aumentar”, quando sabia que ia cantar nessa noite. Já depois da atuação, uma vez que ainda era criança, deixava-se levar pelo sono e acabava por adormecer, embalada pelo fado, só acordando com o bater das palmas. Por essa altura, Jorge Fernando deixou a casa de fados Sr. Vinho, o que acabou por ser uma “desilusão” para Vânia, mesmo continuando a ser “carinhosamente acolhida como sempre” na casa de fados de Maria da Fé, uma das grandes referências de Vânia Duarte.
Passados uns anos, os pais de Vânia estavam a assistir a um programa de televisão onde Jorge Fernando era convidado, tendo afirmado que era, na altura, fadista residente da casa de fados Bacalhau de Molho, hoje rebatizada de Casa de Linhares. Depois de tomar conhecimento, Vânia decidiu fazer uma surpresa aos pais e reservou uma mesa para os três nesta casa de fados. Jorge Fernando, ao vê-la, reconheceu-a imediatamente e convidou-a a cantar, “mais uma vez por graça”. Ao final da noite, “o patrão da casa, na altura, perguntou-me se não queria aparecer mais vezes para cantar”, o que se viria a confirmar pouco tempo depois, ao ser convidada para ser fadista residente da Casa de Linhares.
Antes de integrar um elenco com nomes como Celeste Rodrigues, Jorge Fernando, Ana Moura ou Raquel Tavares, Vânia enriqueceu o seu percurso musical com passagens pela Escola de Música de Santarém e pela Escola de Jazz do Hot Club. “É importante bebermos de outras musicalidades, enriquece-nos sempre”, diz Vânia que, a par com a música, fez alguns cursos e workshops de teatro. Além disso, em 2003, foi selecionada para participar no concurso da RTP, Operação Triunfo II, tendo frequentado a escola de música do programa e participado em várias tournées. Mais tarde, licenciou-se em Animação Sociocultural, tendo ainda trabalhado algum tempo como animadora numa escola, até perceber que esse trabalho não era saudável para as suas cordas vocais, já que tinha de elevar o tom de voz com frequência.
Quando se tornou fadista residente da Casa de Linhares, aos 22 anos, Vânia Duarte já tinha um percurso musical e artístico de alguns anos, o que a preparou, acima de tudo, para “ter a humildade de receber os conselhos dos mais velhos”. “Aprendi o que era estar numa casa de fados, o que era vestir bem, o que era usar um xaile, são aprendizagens que levo para o resto da minha vida”, diz Vânia sobre os primeiros anos na Casa de Linhares. Aprendeu também a respeitar a verdade do fado e a perceber que “não se pode cantar as histórias mais tristes com 20 anos da mesma forma que se canta quando se tem uma vivência maior”. Sendo “um estilo musical que vive muito do sentimento e da verdade”, o fado “tem sempre uma melancolia associada”, segundo Vânia, que considera o fado “um pequeno mundo por descobrir”. Nos últimos 18 anos, a Casa de Linhares foi esse pequeno mundo, onde Vânia Duarte aprendeu “muito com os antigos e com os novos”, e onde se fez fadista.
Ao longo do seu percurso musical, Vânia Duarte conta com dois álbuns editados, sendo que o primeiro, intitulado “Efeito de Fado”, teve a produção de Custódio Castelo, um dos maiores guitarristas portugueses da atualidade. O segundo, no qual se estreou como letrista e compositora, leva o seu nome, “Vânia Duarte”, e é inspirado nas muitas noites de fado na Casa de Linhares. Segundo a fadista, “é fruto do que sou hoje, e de todas as pessoas que têm passado pela minha vida e que me têm feito crescer, como pessoa e como artista”.
Além de fadista residente, Vânia Duarte é também, desde há 7 anos, proprietária da Casa de Linhares. “Nunca ambicionei isto, sempre disse que não queria ter um restaurante nem sociedade com ninguém”, diz, antes de revelar que assumiu a responsabilidade da gerência, em parceria com dois sócios, quando “surgiu a oportunidade”. Erguida junto às margens do Tejo, no século XVI, a Casa de Linhares é hoje o que resta de um edifício renascentista que ruiu no terramoto de 1755, devendo o seu nome aos Condes de Linhares, uma das famílias nobres de Portugal, que aqui viveu em tempos. “Conseguimos ter duas salas com uma arquitetura diferente, uma sala mais pequena e intimista, e outra sala mais imponente, com capacidade para cerca de 100 pessoas. São salas com valências diferentes que se complementam”. É assim que Vânia Duarte descreve, resumidamente, este “espaço muito nobre” no Beco dos Armazéns do Linho. Enquanto responsável pela direção artística e relações públicas, estando os dois sócios responsáveis pela restauração e “toda a parte burocrática”, Vânia Duarte conta com a ajuda dos fadistas e guitarristas residentes. André Dias e Bruno Chaveiro, dois talentosos guitarristas da nova geração da guitarra portuguesa, acompanham os fadistas André Baptista, Fábia Rebordão e, claro, Jorge Fernando, “o grande responsável de hoje estar aqui nesta casa”, afirma Vânia Duarte, colega, amiga e patroa deste elenco de artistas do fado. “Muitas vezes perguntam se somos família, o que diz muito de nós, se os clientes nos perguntam é porque transparecemos isso”, diz, enquanto ajeita o xaile.
Desde que está à frente da Casa de Linhares, Vânia Duarte considera que, apesar de ser “um trabalho muito intenso e muito duro”, é também “muito compensador”. Uma vez que canta diariamente, Vânia não consegue viajar com a frequência que gostaria, porém, “o facto de virem clientes de muitos pontos do mundo, incluindo portugueses com certeza, deixa-nos viajar um bocadinho com cada cliente que nos visita, esse lado é encantador”. Enquanto se prepara para mais uma noite de fados, a fadista afirma: “Gosto muito de falar com os clientes, saber de onde vêm, por que nos visitam, se já conheciam o fado ou se foi a primeira vez que ouviram”, acrescentando, “os estrangeiros chegam a chorar, mesmo que não compreendam nada do que dizemos”.
Ao longo destes 7 anos de gerência da Casa de Linhares, foram muitas as noites memoráveis, por vezes com atuações inesperadas de artistas que visitam a casa e, ao fim da noite, acabam por cantar de forma espontânea. Numa dessas ocasiões, um cliente pediu que um dos fadistas residentes cantasse uma música da Mariza para pedir a namorada em casamento. Fábia Rebordão iria cantar a música pedida mas, entretanto, entrou a própria Mariza na sala para jantar e assistir à noite de fados. Depois de Vânia explicar a Mariza o que se iria passar, esta disponibilizou-se a cantar para o casal que, provavelmente, nem nos melhores sonhos imaginou um pedido de casamento assim. Em outra ocasião, Vânia recebeu uma chamada de Dino d’Santiago, seu amigo desde os tempos em que participaram na Operação Triunfo II, a avisar que iria lá com a cantora norte-americana Madonna. A estrela da música pop gostou tanto da experiência que, além de fazer uma publicação nas redes sociais com a legenda “Fado, fado, fado com a linda Vânia… tão inspirador”, tornou-se cliente regular da Casa de Linhares. Vânia prefere não sobrevalorizar a presença de figuras ilustres na sua casa de fados pois, na verdade, “a Madonna, a Maria, o Zé, são todos tratados de igual forma”, diz a empresária e fadista.
Vânia Duarte não esconde o orgulho na “família Casa de Linhares” e apenas quer continuar “a viagem mais longa que já fiz, sem sair do mesmo sítio”. Esse sítio, onde o fado acontece todas as noites, é a Casa de Linhares, uma das casas de fado mais respeitadas de Lisboa.