Leonel Rocha

Nascido em Pombal, a 13 de novembro de 1940, Leonel Rocha tinha 8 anos quando se mudou com a família para Ferreira do Zêzere. Aos 11 anos, teve que abandonar a escola para ajudar no sustento da família, passando a trabalhar na serração onde o pai era encarregado. Mais tarde, já depois de casado, trabalhou em outra serração até aos 28 anos, altura em que decidiu procurar uma vida melhor além-fronteiras. “Parti sem contacto nenhum. É preciso tê-los no sítio para dar dois beijos à mulher, dois beijos à filha e adeus até um dia”, conta Leonel, concluindo: “Não saí de Portugal para gozar a vida, saí de Portugal para governar a vida”. Leonel Rocha embarcou numa viagem repleta de peripécias, que incluiu passagens por Paris e Estugarda, tendo terminado na cidade alemã de Rottweil. Encontrou trabalho numa fábrica de pistões, propriedade de uma filial da Mercedes, e iniciou uma nova etapa na sua vida. Pouco tempo depois, a mulher e a filha juntaram-se a Leonel Rocha, sendo que a esposa começou por trabalhar nas limpezas de um hotel e, mais tarde, foi trabalhar para a fábrica onde trabalhava o marido.

A ligação de Leonel Rocha ao acordeão e à concertina começou na infância. O “bichinho” veio primeiro do avô e depois do pai, que tocava ambos os instrumentos, e “corria os bailaricos todos a tocar”. Apesar de nunca se ter considerado um grande acordeonista, mesmo tendo “feito uns bailaricos”, Leonel Rocha sempre se sentiu fascinado por acordeões e concertinas. No entanto, esta paixão esteve adormecida durante alguns anos, tendo despertado em Rottweil, quando Leonel Rocha comprou um acordeão partido para arranjar. “Quando terminei o arranjo, não estava seguro do que tinha feito, precisava de saber como é que isto funcionava”, diz, apontando para um acordeão, o instrumento musical que considera ser “o mais completo de todos”.

Numa cervejaria da cidade, que frequentava com outros portugueses, conheceu um italiano que tocava acordeão e perguntou-lhe onde é que comprava os seus acordeões. O italiano disse que os comprava em Génova. “Na Páscoa, perguntei a um amigo se queria ir comigo a Itália, pois queria saber como é que se arranjava o acordeão que tinha comprado”, conta Leonel, lembrando que não foi em Génova que encontrou o que procurava, mas sim em Stradella, uma pequena comuna italiana da região da Lombardia. “Chegámos a Stradella ao cair da noite e comecei logo a ver fotografias de acordeonistas nas paredes e fábricas de acordeões nos dois lados da estrada”, conta com nostalgia. “No dia seguinte, fomos visitar a Cooperativa Stradella. Disse que gostava de saber como funcionava e como era feito um acordeão, para poder reparar e dar assistência em Portugal. Disseram que a porta estava aberta e que podia ir lá estagiar. Foi o que queria ouvir”, lembra Leonel, ciente da importância dessa oportunidade. De regresso à Alemanha, pediu baixa médica, coisa que não fazia há 2 anos, e partiu novamente para Itália, onde permaneceu três semanas. Na fábrica Cooperativa Stradella, Leonel Rocha começou por forrar as caixas dos acordeões com celuloide e, mais tarde, passou para a mecânica dos instrumentos. “Quando regressei à Alemanha, deram-me um caixote com as mecânicas todas a vulso para eu montar durante a semana. Dedicava-me a montar depois do trabalho”, diz, acrescentando que passou a deslocar-se todos os fins de semana para Stradella. “À sexta-feira à noite pegava no carro e chegava no sábado de manhã a Stradella. Mostrava o trabalho ao engenheiro da fábrica e ele dava-me outra parte para montar”, conta, enquanto mostra um fole, uma das partes mais importantes do acordeão. O passo seguinte foi aprender sobre a afinação, sendo que teve como mestre “um afinador genial”, nas palavras de Leonel Rocha. “Na Cooperativa Stradella, disseram que seria bom se aprendesse a afinação com Bertone Enzo, o afinador da Fratelli Crosio [marca de acordeões]. Certo dia, um amigo perguntou ao Enzo se eu podia ir aprender com ele. O Enzo disse para estar no dia seguinte, às 9 horas, na Fratelli Crosio. Fui aceite para estagiar lá”, recorda, com visível orgulho. Durante os 3 anos que se seguiram, o tempo que durou o estágio, Leonel Rocha manteve a rotina de trabalhar durante a semana na fábrica e, à sexta-feira, partir para Stradella, também conhecida como “a pátria do acordeão”. “O Enzo explicou-me tudo sobre afinação!”, diz, sem reservas. Antes de regressar ao seu país, em 1982, obteve, da fabricante italiana Accordiola (atual Mengascini), um contrato que o tornou representante exclusivo da marca Perle D’Or em Portugal.

Regressado a Ferreira do Zêzere, Leonel Rocha concretizou o seu plano de abrir uma oficina especializada no fabrico e reparação de acordeões e concertinas. O Atelier do Acordeon, como mais tarde foi batizado, tornou-se uma referência para muitos acordeonistas portugueses de renome, tais como Eugénia Lima, Ilda Maria ou Tino Costa. Ao longo dos anos, a reputação de Leonel Rocha como técnico e afinador de acordeões foi-se consolidando, tendo chegado a afinar acordeões para alguns campeões do mundo, como Éric Bouvelle ou Jérémy Lafon. Hoje em dia, mais de 40 anos depois de ter aberto portas, continua a ter como clientes alguns dos melhores intérpretes da nova geração, como é o caso de João Barradas, um dos mais conceituados acordeonistas europeus. Além de já ter fabricado inúmeros acordeões Perle D’Or de raiz, Leonel Rocha também criou a sua própria marca de acordeões, a Rocha, tendo mais de três dezenas de acordeões da sua autoria espalhados pelo mundo.

O êxito do Atelier do Acordeon é fruto da visão e da dedicação do seu proprietário, mas não só. Em janeiro de 1990, após ficar viúva, Isabel Gomes encontrou emprego no Atelier do Acordeon. “Ficou uma vaga por preencher e vim cá pedir trabalho. Quando comecei, nem sabia como era um acordeão por dentro. Dançava ao som dele no rancho, mas não sabia que o acordeão era este mundo”, conta Isabel Gomes, a única mulher a trabalhar nesta área em Portugal. “Fui aprendendo aos poucos, ainda hoje não sei tudo. Isto requer muita dedicação e muito gosto”, diz, antes de acrescentar: “Cada acordeão que sai daqui é um bocadinho de mim que vai”. Apesar de já ter ajudado Leonel Rocha a construir e restaurar instrumentos para grandes músicos, Isabel Gomes admite que a sua “maior alegria é ver as pessoas chegarem aqui com o acordeão dos pais ou dos avós para restaurar, e depois vê-las a sair daqui a chorar de alegria com o acordeão restaurado”. A artesã entregou-se de alma e coração ao Atelier do Acordeon desde o primeiro dia, tendo inclusivamente feito um pequeno estágio numa fábrica de acordeões em Itália para saber mais sobre este instrumento. À exceção da afinação, que fica a cargo de Leonel Rocha, Isabel Gomes faz “um pouco de tudo, desde pintar os acordeões até fazer os folos, entre outras coisas”.

Quando ficou viúva, em 1987, Isabel tinha 24 anos e um filho de apenas 2, chamado Bruno Gomes. Passados 3 anos, quando entrou para o Atelier do Acordeon, levou consigo o filho, que cresceu rodeado de acordeões e concertinas. Apesar de, no início, ter mostrado alguma resistência, Bruno Gomes acabou por se apaixonar pela música, mais concretamente, pelo acordeão. “Durante 3 anos, ia todas as quartas-feiras com o Bruno para o Instituto Vitorino Matono, em Lisboa, para ele tirar o curso de acordeão”, conta Leonel Rocha, que considera Bruno como um filho. Além de acordeonista, com três álbuns gravados, Bruno Gomes também trabalhou vários anos como professor de música do Atelier do Acordeon. Sentado junto ao primeiro acordeão do filho de Isabel Gomes, feito na sua oficina há 26 anos, Leonel Rocha não tem dúvidas em afirmar: “O Bruno é um grande professor, executante, afinador e mecânico. Tem tudo! O acordeão para ele não tem segredo nenhum”. Atualmente, Bruno Gomes é presidente da Câmara Municipal de Ferreira do Zêzere, cargo para que foi eleito há dois anos. Não escondendo o orgulho nesta conquista, Leonel Rocha acredita que, no futuro, Bruno Gomes voltará a dedicar-se à música, dando continuidade ao Atelier do Acordeon, juntamente com a filha e o genro. Enquanto esse dia não chega, o artesão garante: “Ainda cá vou andar muitos anos. O diabo para me levar tem de trabalhar muito”.

Com o falecimento da esposa, há quatro anos, e o afastamento de Bruno Gomes, a vivenda onde Leonel Rocha vive e trabalha ficou mais vazia. Ao seu lado, há 33 anos, continua Isabel Gomes, com a mesma paixão e dedicação de sempre. Os dois fazem, sobretudo, restauros de acordeões e concertinas, com todas as particularidades da complexa estrutura de fole e teclas, que fazem destes instrumentos musicais verdadeiras obras de arte. Apesar das semelhanças entre os dois instrumentos musicais, Leonel Rocha considera a concertina mais difícil de tocar, bem como de afinar, pois “ao abrir faz um som e ao fechar faz outro”, ao contrário do acordeão. Porém, “quem aprende acordeão, aprende concertina”, diz Leonel Rocha, que teve o privilégio de aprender com grandes mestres italianos. “Sabemos os segredos todos disto. Às vezes, aparecem aqui clientes a perguntar qual é o problema do seu acordeão. Eu digo à pessoa para tocar um pouco, fecho os olhos, e sei logo onde é que está o defeito”, diz Leonel Rocha, acrescentando que, para ser um bom afinador, “não é necessário ser barra em música, mas é preciso ter ouvido”. Internacionalmente reconhecida como uma das melhores casas para afinação de acordeões e concertinas, o Atelier do Acordeon orgulha-se de fazer “afinações para todos os gostos, desde a música folclórica à música clássica”, segundo o seu proprietário. Mais de 40 anos depois de se ter dedicado a esta arte, Leonel Rocha garante: “Sei como o acordeão nasce e como morre, e sei o que lhe pode acontecer pelo caminho”.

Há 12 anos, por intermédio do vereador da cultura da Câmara Municipal de Ferreira do Zêzere, Leonel Rocha promoveu o primeiro Festival Internacional de Acordeão desta vila. “Quando subi ao palco, em frente a uma plateia de umas 300 pessoas, disse que tinha lançado a semente e agora era uma questão de a cultivarem”, conta o artesão, enquanto afina um acordeão da marca Mengascini. Recentemente, realizou-se a 12º edição do Festival Internacional de Acordeão de Ferreira do Zêzere, o que mostra que “foi uma aposta ganha”, aos olhos de Leonel Rocha. O festival, que conta, regularmente, com nomes consagrados na arte de tocar acordeão, tornou-se um dos principais eventos culturais do concelho de Ferreira do Zêzere. Mesmo que o sonho de abrir uma fábrica de acordeões, em grande escala, tenha sido posto de parte, Leonel Rocha espera que o projeto do Museu do Acordeão, que reunirá todo o acervo que reuniu ao longo dos anos, vá para a frente. O sonho da fábrica ficará para os filhos, se assim o desejarem. O legado de Leonel Rocha também permanecerá vivo através das pessoas que com ele aprenderam, como é o caso de Bruno Gomes, como é óbvio, mas também de pessoas como José Dias, um emigrante que estagiou durante uns anos no Atelier do Acordeon e que, hoje em dia, tem uma das maiores casas de reparação e construção de acordeões da Alemanha.

Aos 83 anos, Leonel Rocha continua a trabalhar de segunda a sexta-feira, sendo que, ao fim de semana, costuma receber pessoas que querem visitar o atelier, como clientes ou grupos de turistas. Trabalho não falta na oficina onde passa os dias a restaurar acordeões e concertinas, dando resposta a encomendas que lhe chegam de todo o país e também do estrangeiro. Apesar de já não se lembrar da última vez que tirou férias, o artesão só lamenta que o tempo não chegue para as encomendas. “Aquilo que tenho mais orgulho é dos meus clientes”, diz, antes de tocar a música Lisboa à Noite num dos acordeões feitos por si. Sob o lema “futuro e tradição juntos”, o Atelier do Acordeon vai continuar a sua história, mantendo-se como uma casa única, não só em Ferreira do Zêzere, mas em todo o país.

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